quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

por favor, rohypnol

Já está tarde.
Papai já foi para a cama antes de nós, princesa da minha vida.
Agora estamos sós. Como era antes de você vir para este quarto pequeno com desenhos do Pequeno Príncipe. Mamãe já te alimentava.
Nós, contra o mundo nessa noite fria, fugitivas de um destino que recusamos. Porta aberta contra a rua que não abriga mais ninguém há muito tempo. Um bairro distante, uma terra infeliz para as de nossa linhagem.
Não vai tomar friagem, não!
Papai dorme lá no quarto grande decorado com pequenos losangos que eu odiei desde o começo, mas nos amávamos e eu achava que era o suficiente. Depois as panelas velhas de herança da sua mãe morta e os panos que serviam uma geração leprosa há séculos. Acumulados em prateleiras, buracos e cantos; tecidos vadios e sem graça.
”Dariam uma bela fogueira”, a mamãe pensa.
Seguimos em frente. Contra isso. Nós duas.
Papai dorme. Deixe ele que o sono é pesado nessa noite para sempre.
Vamos dormir, querida. Longe demais daqui.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

minha cidade de sintetizadores

Há dias tentava encontrar a "peça". Achei lá no meio da pista quando rolava “True Faith”.Todo mundo balançando a cabeça, curtindo a música, entrando aquele baixão, e eu lá olhando a cara dela na hora do crime.
Baixão animal.
Deixou cair o batom quando meu viu. Lábios grossos que já beijei muito.Tinha essas coisas de se maquiar toda hora, gostava: era uma mulher que ficava demais com aquele bocão vermelho de sangue, coisa rara em mulher que se emperequeta demais.
Ela me olhou lá no meio daquele pessoal, tocava uma música irônica, né?!Lá, lá tocava a música alta e as pessoas pagaram para dançar um pouco, “se libertar” eles dizem; eu, eu paguei para encontrá-la ali no meio da pista em meio àquele momento de deleite meu. Só meu, não das pessoas dançando, beijando, ou bebendo: meu deleite.
-Caralho...
Ela não falou. Li os lábios.Grossos.
Era para eu não estar ali naquela hora, ou momento, ou ano.
Ou país. Azar cruza com a gente toda hora, querida.
-Te achei.
Ela leu também no meio daquele barulho: era melhor que eu nesse lance de leitura labial. “True Faith” rolava, só aquela parte final do sintetizador: lindíssimo, cara.Lindíssimo.
Ela balançou a cabeça de medo, azar, sei lá. Começou a rolar um “Killing an arab”.
Te amo, DJ.
Dançamos muito essa lá no Madame Satã umas vezes, chegávamos em casa e eu colocava um Depeche Mode “The  Meaning of love” e a gente tirava a roupa com raiva, e a coisa saia como tinha que sair.
Saia. Entrava.Machucava de bom.
Eu brincava com facas naquela época e ela gostava, tanto, que aprendeu o ofício.
Gostava de ter o corpo tocado pela lâmina gelada, não tinha medo. A gente brincava, tudo era permitido.
Daí, de tanto eu brincar com facas, fiquei de castigo um tempão num lugar meio frio, ganhei umas tattoos novas nesse pico.
E ela era meio que a causa de tanto tempo com o chapéu de burro na cabeça. Mudou, cresceu, brinca com dinheiro de gente grande; creio que ela acha essa nova brincadeira muito mais “entretenimento” que a minha.
E eu achei ela ali: era a peça que faltava.
Riu de um jeito engraçado, de medo, sei lá. Como se soubesse que ali era difícil de fugir de mim.Gostei dela nesse segundo.
Não sei explicar, mas desisti ali (naquele momento) de castigá-la como eu fui na intenção.
Chegou um cara abraçando ela. Ela, gelada, com a cara fixa em mim, como se tivesse segurando um tesão; um gozo vindo subindo pelas pernas longas dela.Pernão de mulata animal ela tinha.Tem.Mantém.
O cara percebeu. Eu sorri.
E começou a tocar “Stop me if you think that you heard this one before”. A gente dançava muito essa olhando pro chão, pra lá e pra cá.
“only slightly less that I used to, my love”.
-Vai embora, sua vadia.
Ela entendeu. A cidade era minha de novo: para eu ficar em paz ela tinha que ir embora.
No final, foi uma troca justa.