sábado, 17 de julho de 2010

o monstro de dois corações


Tenho um coração desenhado no caderno. Tinha. Ela que fez. Desenhou, uma vez, com uma canetinha vermelha e fez um jogo de cores. Milhões de coraçõezinhos unidos “uns aos outros” formando muitos corações. Uma infinidade. Coisa geométrica, trabalhosa e, de certa forma, genial. Mas reparo, reparei, na verdade “paro pra pensar”, que, dois corações desenhados e unidos um ao outro formam, formavam, uma imagem pavorosa. Conhecida.
Deu o estalo, dera, e nesse momento “eu percebi” que a aberração que me atormentava em noites ígneas era o monstro que possuía a forma de dois corações: a imagem pavorosa da minha infância era ele, em vermelho, pingando sangue-cor-de-canetinha. Pavoroso, assassino; desejando chupar o sangue pelas minhas orelhas.
Dois corações unidos. Sobrepostos em jogo, um encaixando ao outro, foi assim mesmo...
-Amor, tenho medo de ti.
Disse isso a ela naquela tarde: matei deliberadamente, e inconseqüentemente, os beijos que iriam nascer e o amor que iríamos cultivar, brotar - e quem sabe-  sufocar de forma cruel no nosso futuro relacionamento. Não nasceu: “morreu” naquelas (“minhas”) palavras. Matei.
-Por quê?
-O monstro, Cláudia! O monstro da minha infância!! Foi você que o criou!
Cara de tacho, estupefata, abobalhada; uma cara estúpida e redonda: levaram, na verdade se foram, alguns segundos para eu achar ela feia, gorda e ordinária. A criatura d’ela me devia noites que não dormi, xixi que não fiz na escola e coragem para enfrentar a morte quando papai precisava. Esse monstro me espreitou até a adolescência, e ela (CLÁUDIA!!!!) era a arquiteta doentia desses castelos retorcidos que eram a minha mente semi-adulta numa tarde na escola cursando o supletivo à noite.
O monstro me deixara lerdo, por isso estava lá com os “lerdos”.
Cláudia era patética, nos unimos por nossa essência malcheirosa, deformada e, de certa forma, imaculada na nossa ignorância consentida.
Ela era o monstro. Desenhou no meu caderno.
Jamais pensei que dois corações unidos, um completando o outro em direções contrárias, formassem a imagem que me enlouqueceu e tirou a mulher que me amava, pois (mais tarde) me foi revelado que ela me amava incondicionalmente, e estava morta àquele instante da epifania em Lisboa num cemitério pobre.
Pobre Cláudia, jamais soube o que quis dizer; passei a evitá-la todas as aulas e abracei uma amiga dela certa noite. Elas se diziam “melhores amigas”. Cláudia sumiu da escola e eu me engracei com a “bela” melhor amiga.
-Que monstro?
Contei. Disse a “essa”, que se dizia interessada por minhas histórias de madrugada enquanto buscava um papel higiênico.
-Você é louco, mas eu gosto.
Naquela noite o monstro voltou. Agitei-me como louco de terror. Hospital. Luzes. Tomografia. Eletroencefalograma. Exames. Amostras.
Eu disse que era o monstro.
-Foi Cláudia que me fez esse mal, doutor.
Se riam. Saiam à francesa.
O monstro de dois corações apareceu todos os dias desde então, e hoje eu vejo que ele correu atrás de mim pela Paulista.
Não me deixe morrer assim, pelos corações unidos, pelas sensações que eu deliberadamente assassinei, leitor.
Acredite em mim, ele existe e eu sei que me olha agora. Dois olhos, profanos, nascidos da perfeita simetria de corações orientados ao norte e sul.

sábado, 10 de julho de 2010

muito grato

“Homem de respeito não anda por essas bandas. Não, não é preciso se adesculpá; aprecio somente uma meia volta e uma bela corrida pela estrada de volta ao lugar de onde nunca deveria ter saído. Rápido, de preferência; na verdade é preciso considerar que o sinhô não possui muito tempo para cumprir essa tarefa que lhe foi delegada”.
Tanta erudição estranha para matar um homem. Tanto rodeio para transformar a vida do caboclo em uma ida para o céu mais florida na conversa.
Sem precisão de tudo isso. Nada. Na hora que há de vir só quero um Pai Nosso e peço desculpa a todos: aquele “pede desculpa pra mãe, e desculpa qualquer coisa ocê também”.
Mas o homem que eu falava antes correu e tentou a sorte. Conseguiu. O outro, o de concordâncias estranhas, ficou contente por que, finalmente, alguém tinha ouvido aquela erudição e ia propagar a história na tradição oral ou  literatura.
É, fui eu. O homem de respeito que pisou no lugar errado. Consegui, e a partir desse momento senti uma bela de uma gratidão pela vida; tanto, que jamais virei a estrada do jeito que fiz naquele dia de noite sem olhar para onde se ruma ou olha a placa.
Sou grato pelos homens amedrontadores e eloqüentes, eles me disseram algo que jamais ouviria na vida; desse causo, desse fato, a partir daí, me tornei um homem que fala manso-bonito... e, sempre, aconselho todos a fugirem do meu caminho. Entende?

sábado, 3 de julho de 2010

a chama

Talvez seja um troço meio besta...
Sim, pensar no dia de amanhã. Sim, voltar a cabeça no meio da noite para pensar na agonia do dia fudido que será quando eu levantar a cara cheia de marcas de travesseiro para sorrir para o mundo. Sim, será errado pensar no amanhã, livros de auto-ajuda e outros papéis escritos sem um pingo de alma. Será difícil pensar no dia de amanhã quando eu não tiver outra coisa a fazer a não ser me masturbar até sair sangue pelo pinto, ou apagar as cruzadinhas para fazê-las de novo. Não, não há um pensamento bom em ligar o amanhã às coisas felizes e promissoras de final de filme previsível; se está bem, provavelmente será o mesmo; se está uma merda, federá um pouco mais, quase não dá para perceber...
Há as variações: dias que não acabam ou a promessa de algo melhor, como naquela mão que você ganhou na última carta sendo virada. Isso é a vida, não há uma mistificação nela, caralho, não há um pensamento bom no amanhã a não ser insistir em guardar a chama que Hank disse; essa chama que a gente tem que guardar na palma da mão e sabe que um dia estará lá, forte. Pode ser amanhã ou não: o lance é se surpreender se for amanhã, cara.
É bem assim.