sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

a central de cobrança

Verdade, verdade. Estamos aqui, numa sala retangular, com revistas Veja em cima das mesas de vidro, bem reluzentes, e refletores comprados em alguma loja moderna de design de interiores. Vejamos... De frente ao sofá de veludo (que estou sentado) tem uma sala, e ouvimos, através de uma gigante porta de metal, uma mulher torturando um homem que grita nítida e estridentemente. Barulho intenso de instrumentos odontológicos, pancadas e instrumentos cortantes.
Não há uma placa escrito “dentista” nessa sala.
Eu aguardo. A moça – uma ruiva voluptuosa e com uma blusa toda suada escrito “Sidney Sheldon makes me happy” – faz uma menção para mim e um sinal “você é o próximo”. Eu pego uma das diversas revistas da mesa à minha frente. Dobro a revista nas mãos, e me dirijo até a sala.
Abro a porta. Homem caucasiano (branco, porra), calvo, com um mullet ridículo pendendo nos ombros jorrando sangue pela orelha. Torrentes intermináveis de sangue descendo pela sua “outrora” camisa social branca. Filetezinhos de sangue pendem pela boca numa cachoeira do inferno.
– Bom trabalho, ruiva...
Ela me olha com uma expressão vazia e entediada. Sai em direção à porta. Bate com força e derruba um quadro com os procedimentos da sala. O treco quebra, péssimo material.
Eu faço uma menção ao cara.
-Oi, beleza...
O cara grita desesperadamente. Está amarrado numa cadeira e amordaçado com um pano imundo e babado.
Eu sorrio, ué?! Afinal, sou um homem cordial.
-Meu, espero que eu consiga realizar bem o meu trabalho aqui. Veja bem, se eu conseguir desenvolver um bom atendimento contigo, não haverá a necessidade de você parar naquela vala clandestina que fizemos ao lado do Cemitério Israelita; especialmente sob encomenda e com todas as suas medidas, ok?!
Ele balbucia algo.
– Eu disse “fizemos”, mas eu não estava lá de qualquer forma, sabe?! Tava em casa, dando umas voltas com o Poppy e pegando o seu cocô. Demos uma volta pelo bairro em busca de umas cachorras, to querendo tirar a virgindade dele, sabe? – sorrio.
O homem me olhava menos aterrorizado. Intrigado.
-... mas, veja bem, como eu ia dizendo, “se” fosse eu “o puto que abriu aquela vala da morte numa noite chuvosa e com um calor infernal da Zâmbia que dava nessa cidade”, desceria o cacete em você de raiva e, realmente, esperaria que você morresse o quanto antes pelo trabalho todo. Viu aquela ruiva que te tratou com carinho agora? Ela e mais um maluco russo, bem encorpado, ficaram a noite inteira com pás e terra por todo o corpo. Não me parece nada divertido. E ela odeia aquele grandalhão que vive fazendo piadas sexistas com ela, sabe? Fez a noite inteira isso com ela. Por isso, por toda essa noite, te digo que ela está louca para acabar contigo, amigo. Eu vejo com os meus próprios olhos o empenho dela nessa solicitação.
O homem se altera. Começa a respirar alto como um velho à beira da morte sendo reanimado por desfibriladores.
-Calor, amigo?
Eu me dirijo até um ventilador no canto da sala. Reato uns fios e ligo na tomada.
-Melhorou, né?! Viu como ela saiu toda suadinha daqui. Legal, né?! Eu aprendi esse truque com o pessoal “das antiga”; gente tarada, não me enquadro nessa estirpe, mas tenho que manter o segredo dos homens por aqui. Sigilo profissional, vínculo empregatício. Diverte a todos e até os que sentam aí, né?
Ele grita.
-Se bem que seria doentio um homem ter uma ereção quando está sendo surrado, cortado e espancado a horas por uma mulher bonita e atlética...
Ele não esboça nenhuma surpresa. Começa a chorar copiosamente.
-Acredito que tem gente que já sentiu isso. O truque é deixar o ventilador desligado e elas suam mais aqui nessa sala, o que torna a vida de todos mais divertida por aqui, não é? Como fenômeno comportamental me interessa, estou no terceiro ano da faculdade...
Ele continua inexpressivo.
-Continuando… Eu tenho vinte minutos para tentar um “approach” melhor contigo, ok?!
O cara meneia com a cabeça afirmativamente. Meio tímido, mas acho que a expressão corporal não me traiu dessa vez: vemos um cara amarrado numa cadeira de ferro com arames por todo o corpo, amordaçado; acho que não é mais possível ter dúvidas em relação às minhas noções apuradas sobre comportamento e expressão corporal. Tenho que estagiar e trabalhar bastante para fechar a solicitação. Me empenhar. Focar.
Tem um cara todo fudido na minha frente.
-Okaaaaaay.... Vamos lá… - digo, tirando a mordaça imunda do cliente.
Eu não lembrava muito do caso todo. Só sei que tínhamos que refazer todo o percurso e analisar tudo de novo. Tinha um laptop aberto numa cadeira com o log de todo o atendimento.
-Vejamos... O senhor está com um acordo com o banco, não é mesmo?
-Fhim.... Siimimmmm...
– O senhor fez uma antecipação do acordo, né?! De todas as parcelas no mês 10... eeeee
(pausa, 3 segundos)
- …. vejamooooos…. parcelou essa fatura  em 24 vezes de R$6.555,47 com juros mensais de 17,87%, correto?
-Hmmm... fhimmimmm...
-Sua dicção está difícil...
Dei uns dez segundos e olhei para ele atentamente. Ele estava tremendo. Acho que se mijava. Cheirava mal. Eu o olhei com compaixão.
-Amigo, não tenha medo... Eu sou meio novo nessa célula, já trabalho há um bom tempo com isso, mas isso é inteiramente novo para mim. Eu quero fechar isso com o senhor e, acredito, que é do seu interesse manter a vida e gozar da sua vida plena com a família e seus filhos, não é?
-SIM!
- Humm... melhorou... melhorou....
Ele estava vívido pela primeira vez.
-Ok...
Peguei a pasta em cima.
– Tem uma filha? Catarina, né?
- Deixem ela emmmm... PAAAAAAZZZZ!!
– Interessante. O senhor tem estímulos mais inteligíveis e dicção aperfeiçoada conforme mencionamos o seu núcleo familiar. Espere...
Eu abri o meu bolso do paletó e liguei o gravador.
-Não se importa, né?
Ele não respondeu. Fez uma cara feia.
Eu me aproximei dele, dobrei com mais força a revista que estava na minha mão e bati com força na cara dele umas quinze vezes.
-E não é que essa revista é boa para isso?!
O homem gritava de dor e agonia. Um barulho desnecessário.
-Vai pagar essa dívida quando, senhor?
-Amanhã!!! AMANHÃ?
Olho pausadamente para ele. Rosto vermelho, boca sangrando.
-Será que posso acreditar no senhor?! Entramos em contato com o senhor, deixamos recado três vezes no seu celular e jamais fomos atendidos... O que o senhor faria para acreditarmos nisso?!
O homem ficava chorando e não dizia nada.
Peguei uma pasta na mesa do canto. Eu estendi uma foto a ele.
-Ela tem dezoito anos. Catarina. Não faremos nada com ela, senhor. Nada...
O homem desabou.
- Por enquanto... ela tem toda uma vida de pecados pela frente.
-Eu pago!!
-Espero que o senhor faça isso, anseio do fundo, do âmago da minha alma, pois estamos com ela em um apartamento no Guarujá. Ela está presa em quarto antirruído e, até o momento, aquele russo, que cavou a sua cova, está jogando um Black Ops online na sala... bem despreocupado... mas se mandarmos uma mensagem para ele, creio que ele ficará meio incomodado por interrompermos a sua partida online; e, creio, que ele irá se entreter de outra forma...
-Não façam isso! Não é preciso isso!
-O senhor acredita?!
-Não! É mentira, seu filho da puta! Catarina está em Minas na casa da prima !
Eu peguei o laptop. Fiz uns logins.
Coloquei uma cadeira em frente a ele e posicionei o laptop à altura dos seus olhos. Uma webcam, meio trêmula, posicionada no teto; alguns frames meio lentos, mas – no geral – era uma transmissão razoável. Uma garota com um vestido claro e manchado chorava no meio de uma sala sem nenhum móvel. Havia umas coisas escuras em cantos da sala.
-Sua filha está revendo novos conceitos de higiene....
O homem chorou e praguejou, tentou lutar contra a cadeira chumbada ao chão, e os arames farpados iam dilacerando a sua carne até o osso. Por fim teve um ataque de choro e me chamou de tudo quanto é nome. Voltei à sala anterior, peguei mais umas três revistas da mesa com manchetes em fontes horríveis e as dobrei em três. Surrei o diabo com todas.
Por fim ele entendeu.
-Amanhã, senhor?
-Sim.
-Aconselho o senhor a fazer o que for necessário para conseguir esse dinheiro. É o que sempre digo aos meus clientes. “O  que for necessário”...
O homem chorava, assistia hipnotizado a filha chorar no meio da sala a gritar.
Era uma imagem horrenda. Mas existiam trabalhos piores. Comigo era pior na outra célula. Hoje, tenho comissão por baixa de solicitação e o meu VR é bem maior. Muito já se passou nessa vida.
A porra do filme da minha vida passava na minha frente e eu comecei lembrar de quando estava no limite.
-Deixaremos o senhor em um terreno baldio. Há uma quadra de distância desse terreno que mencionei tem um hospital, bem na esquina. Diga que foi assaltado e espancado. Acredite, isso é importante: é uma senha. Eles tratarão você muito bem, é o nosso convênio; tudo será arranjado para que o senhor seja tratado, sem despesa alguma, e poucos saberão do que aconteceu e permitirão o seu atendimento: tudo sem empecilhos ou questionamentos desnecessários, acredite. Somente um homem verificará se tudo que o senhor relatou bate com o nosso acordo aqui, ok? Ele me ligará se algo der errado, compreende? Isso, sempre é importante lembrá-lo, atrapalhará uma partida importante partida online no litoral. Não queremos isso. Te dou três dias, para arrumar isso; é o bastante?!
-Fimmmimmmm... huhuhuhu...
-Catarina prefere urgência nesse assunto...
Chorava para caralho o diabo do homem feio.
-... e nós também.
Desatei os fios do ventilador e o desliguei. Saí da sala com as revistas na mão.
-Tó, leia isso aqui.
Joguei as revistas no colo da ruiva. Ela estava com um miniventilador na mão com a carinha do Ben 10. Bebia uma garrafinha de Corot.
-Eu baixei a solicitação. Não fique brava comigo. Tenho os meus 35% e você 20. Todo mundo fica feliz, ruiva. Leva o homem lá agora.
Saí andando pelo corredor.
-Ei, essa revista é a melhor para isso, ruiva. Pode tentar!
Minha voz ecoava pelo longo corredor da central. Pelos corredores, eu via todos os homens com os seus crachás e respectivas operações. Eu fui descendo aos andares inferiores e me lembrei de como era a vida lá embaixo.
A minha vida. Ex-vida.
Não, ainda era a minha vida, a mesma vida: percebi isso passando o crachá na saída e descobri que faria o mesmo amanhã.
A menina na sala com webcam chorava. A ruiva enchia a cara se lamentando pela perda da baixa. O russo dava risada e jogava umas partidas online no Guarujá.
Os ecos daquele quarto retumbavam na minha cabeça...
Apressei o passo porque lembrei dos cachorros com fome em casa. Metrô cheio. Chovia.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

a morte do século (ou "o que eu fiz nas férias")

não estamos mais aqui.
na verdade, resta pouco. arrumem suas malas,
queimem seus cartões de crédito.
alinhem os quadros na parede pela última vez, crianças.
guardem os cadernos de receitas da mamãe no baú e saiam às ruas, como antigamente saíamos para admirar o pôr do sol na praça ou a passagem do circo na cidade e, garanto, verão um espetáculo singular: o meu corpo caído na rua, desacordado, mijado, cagado e cheio de chagas de um amor não curado. aninhem-se, pois eu prefiro ser admirado na minha decadência do que ser ignorado no esquecimento. pena nada, só memória, gente...
naquele dia, as crianças jogaram bola na rua e me deixaram ser uma das traves do futebol que rolava na rua da feira. o problema é que os carros passavam rápido, e elas gritavam “carro!“ e saiam do caminho cordialmente: e eu continuava parado, com orgulho, como a trave direita do time da rua de cima. intacto, sem dignidade, mas sorrindo. os carros contornavam o meu corpo jovem, franzino.
naquele dia.
naquele dia. naquele dia, a previsão do tempo foi cruel e disse, sem pesar, que ia chover granizo e eu fiquei lá, um corpo endurecido na praça pelo frio, úmido, os dedos sujos, a bermuda imunda e toda chance de redenção estaria dias à frente. uma senhora me jogou um cobertor e disse para eu ficar com deus. a redenção estava...
(adiantemos o bendito dia, o dia em questão, da redenção)
era um homem livre; na verdade; eu sou um homem livre. eu caminho pelas ruas sem ter que pegar ônibus ou bater cartão de ponto. naquele dia, um cachorro me acompanhou até a minha casa. eu disse:
-mãe, eu vou tomar um banho.
ela só me olhou. eu tava bem sujo. o cachorro atrás de mim. acho que a minha mãe chorou, sei lá. a vó, que não mexia um músculo desde o último derrame ocorrido na época em que a Laika foi para a lua, a avó doída e velha me acompanhou com os olhos. eu voltei, abri a porta do banheiro (e elas ali, só de olho) me viram pegando o cachorro. carreguei o vira-lata nos braços.
a gente tomou banho junto. o pelo sujo, uma corrente de sujeira pelo ralo, o sangue sujo da navalha social de Norman Bates escoava. xampu no totó.

no dia seguinte, eu acordei e fui para a escola. meu pai chegava de carro de manhã e me ofereceu uma carona.
“pai, a gente tem um cachorro em casa!”
ele descia a Raposo num carro do ano.
“que bom, filho”, não disse mais nenhuma palavra.
na escola, as coisas foram ótimas. eu amo a professora, ela é linda. entreguei a redação sobre os meus dias de alcoolismo e indigência na puberdade. ela leu na minha frente. palavras sobre os dias de trave na rua e carros passando em alta velocidade, dias de pedrinha de gelo.
ela disse que eu escrevia bem, que eu seria um ótimo escritor de ficção. achou bonitinho.
ela achava que era mentira, que era “ficção”. 
e na verdade era tudo mentira. isso era o mais legal, ser mentira.
eu dei o nome do meu texto de “a morte do século”; ela achou profundo; mas, na verdade, nem eu sabia o que aquilo significava; meu pai me dizia: “Carlos, você tem que estudar muito, filho, e elogiar as mulheres, sempre, e em todas as hipóteses, tentar parecer interessante dizendo coisas sem sentido e que vem na cabeça”. isso fazia muito sentido, pois tentar falar algo linear e racional me parecia idiota nos dias de hoje. e sempre elogiar as mulheres era algo que eu sempre fazia, pois parecia tão óbvio, sendo tão bonitas e com olhos tão brilhantes. eu amava as gordas, as magrinhas, as meninas com xampu de maçã verde na carteira da frente, as meninas de Adidas falso correndo em volta da escola de manhã na educação física, as meninas arrumando o cabelo e tomando sopa no recreio, colando papel de carta colorido nas pastas...meu pai me dizia muitas coisas e, que sorte, elas faziam sentido afinal de contas!.
(na verdade o tema da redação era “o que eu fiz nas férias”.)
mais uma mentira em texto. 
tínhamos tantas mentiras de verdade, gente que se esforçava em ser o que não é nas histórias. gente que dizia que sofreu muito, que passou perrengue, que juntou salário, gente que dizia que entendia o amor e amava a todos, gente que falava bonito, que dizia que era contra a violência e preconceito. "o problema é que as pessoas tomam a mentira como verdade, filho", minha professora linda me disse que eu seria um ótimo escritor de ficção e eu a amava por isso. sonhava com ela, casaria com ela quando crescer. eu escrevia mentiras, jamais quis que elas fossem verdade; desse jeito, elas seriam mais fortes e falariam mais de mim, não o contrário. do moleque do poste, dos meus sonhos, toda essa coisa que eu não sou e anseio em ser.
o cachorro me esperava em casa. ele estava perdido, era só isso. surgiu a história desse jeito, na inspiração estranha, os moleques jogando bola na hora que o cachorro me olhou, perdido. eu escrevi tudo aquilo. minha mãe só me deixou ficar com o cachorro depois de muita briga. ele tomou banho na mangueira na calçada da rua. balançou bastante o rabinho com a água caindo no pelo sujo. me lambia. eu sorria.
e eu fui lá na rua onde tombei por dias na ficção da redação da escola de férias, e joguei flores nos quintais daquela gente tão humilde e esquecida. cão perdido, anúncio no poste, criança doente. disse adeus para o cão e o devolvi ao seu dono. talvez uma criança sorrisse com o cãozinho em casa balançado o rabo bem limpinho com banho de mangueira.
eu não estava lá naqueles dias em que cheirei benzina e tomei uma bebida forte de um garrafão com uma caveira com ossos cruzados na chuva. eu perdi uma coisa que eu nem tinha e só escrevia… comecei a escrever minha redação de férias.
era fácil de entender:
eu odiava a humanidade
hoje,
com tudo isso acontecendo,

eu só tenho uma raivinha...

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

a turba

O grito da turba. Enfurecida, incontrolável e indomável.
-Mata! Vagabundo!
Um homem baixo, atarracado, gritava e implorava por clemência.  Acuado, o pequeno homem convulsionava de terror e transpirava no enxofre do calor do meio-dia. Entre foices, tochas e raquetes-elétricas-mata-mosquito; o pobre diabo rogava por sua vida miserável entre um cerco policial e a turba; os homens da lei esboçaram um sorriso, e exibiam o chamado “meliante” às presas sedentas dos espectadores mais exaltados: essas divindades onipresentes e ávidas pela ordem e bom senso da cidade. 
Durante o caminho até a viatura, os policiais conduziram o homem de forma orgulhosa e firme. Mata-leão, imobilizado, “mão para trás, porra”. Escoltavam o homem. Ansiavam, secretamente, que talvez não poderiam conter a população entre o trajeto até a viatura.
Ouvimos um estampido. Foi muito rápido. Um “pá”.
Seco, grave e retumbante no tímpano*.
(*)
!
Armas são puxadas. Senhoras colocam as mãos ao peito. Crianças se assustam entre as pernas dos adultos. Câmeras, celulares empunhados. Estão chutando a cara do homem cercado, os policiais empunham suas armas e dão tiros pro alto. O tenente grita:
-Já era. Deixa o lixo pro povo.
Mataram um homem entre pontapés, socos e peixeiradas. O SAMU chegou atrasado. O homem era suspeito de roubar e agredir uma senhora na Sta Efigênia, era o que diziam. Os policiais que imobilizaram o pequeno homem (com aquele mata-leão bem justo), carregavam mais de 35 mortes entre os ombros como quimeras vigilantes. O sangue ficou, escureceu no asfalto depois de um tempo.
– Joga Coca-Cola que sai, moço! – alguém gritou para o gari.
O povo. O povo era virgem e inocente, até então ...
As telas pixeladas iluminavam os  asfaltos coagulados do Centro através de uma vitrine imponente e bem organizada; exibiam as imagens do incidente em 45” Full HD de imagens bem nítidas 1080p; a edição do programa era única e tinha um propósito: desencadeava um processo ritualístico de transmutação aos olhos precoces e infantes da massa disforme (e monstruosa) chamada “Turba” - esse coletivo incógnito dos pesadelos – que, impassível, assistia ao jornal do meio-dia. Estava ali, percorrendo os olhos sobre as cenas do assassinato enquanto almoçava e, inevitavelmente, memórias coletivas da criatura vinham à tona em torrentes massivas de violência e senso de justiça inflamado; bombardeando violentamente o cérebro policéfalo e dantesco da entidade. Imagens; imagens indescritíveis que jamais deveriam vir à tona, compartilhadas e difundidas a todos os componentes daquela consciência coletiva e vigilante. Mastigava a comida lentamente. Já não resta mais inocência à turba, já não restam mais imagens chocantes a esses olhos condicionados, já não resta paz entre os que descansam…


Todos nós somos assassinos. Sem exceções. Eu e tu, e o rabo do tatu.


* = (O estampido, ouvido lá antes, no começo do tumulto, era uma bombinha. Uma criança a acendeu para assustar os amigos que se acocoravam entre as pernas dos adultos. O resto era resto.).

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

a máscara dos algozes

-Você está abdicando da minha proteção, Pierre?
Houve hesitação.
-Responda, por favor, Pierre … eu concedo o seu direito de resposta, dou a minha permissão para se expressar melhor, livremente, e esclarecer o que acaba de iniciar... Seja claro e cristalino como a água, filho.
Hesitação? Não, não houve, não … o homem – dessa vez – disse decidido:
-Gostaria que Vossa Eminência não interpretasse dessa forma, mas creio que significaria o mesmo, não?
Silêncio. Dois segundos. Continuou:
– Sim, devo dizer que estou saindo desse feudo para me dedicar a outras aspirações. Em suma, sim, estou abdicando da proteção e dos serviços que prestei à Coroa e aos campos.
Incompreensão sincera da parte do nobre.
Ao ouvir a declaração breve, sucinta e determinada de Pierre, o Cardeal não pôde evitar a realização involuntária de um antigo ritual: espontaneamente, começou a passar o anel da sua mão direita nos lábios; o acessório reluzente era parte de sua herança: o próprio Papa dera à sua tataravó como retribuição aos serviços de Deus. Lábios secos tocavam o metal dourado. Era uma espécie de “tique”, um espasmo involuntário que denunciava sua natureza, quando o silêncio da sua indecisão não se proferia em palavras. O anel gélido tocava os seus lábios. Por fim, saciando suas inclinações e, decididamente, incomodado, decidiu falar em um tom mais inquisidor:
-Pierre, diga-me, criatura: o que fará nesse mundo assolado por pestes e outras guerras entre a Coroa? E quanto a outros perigos? Como os infiéis?! Eu protejo a sua família, eu os resguardo, eu os protejo da guerra, e dos infortúnios da vida! Não tens plantação? Alimentação, trabalho e outros confortos negados a qualquer mortal fora desse domínio ?!
Mais uma pergunta. Mais uma.
Não, o Cardeal se deu por satisfeito na sua retórica. O anel brilhava, uma pequena fresta de luz invadia a sala.
Pierre o olhou profundamente, sem desviar os olhos:
-Tenho isso, tenho tudo isso... contudo, o fruto do meu trabalho serve somente para enriquecer o senhor e à Coroa, e não à minha família! Vossa Eminência não consegue escutar os lamentos da boca faminta da minha pequena Marie, que chora ao relento, doente de fome pelas madrugadas.! Vossa Eminência, sou um escravo, seu escravo, um homem que serve somente para ajudá-lo a ascender e enriquecer junto à Coroa: sou escravo do Cardeal Artaud. Na minha casa, estamos presos a esse domínio e não vemos o horizonte por trás desses muros. Meu pai morreu da mesma forma, pobre, trancafiado entre os muros e a guerra! Não desejo mais isso para meus filhos ou a mim mesmo! Eu já servi à Coroa! Já paguei os meus tributos! Servi aos propósitos e fui abençoado na própria Terra Santa pela glória da conquista e de Deus! Por favor, reconheça os meus serviços, Cardeal! Reconheça os meus feitos e conceda a benção da liberdade à minha família! Eu reconheço a vossa misericórdia!!
Pierre gritou ao final. Do lado de fora do castelo, os criados se entreolhavam e os guardas estavam atentos nos corredores.
O nobre sorriu, em um misto de escárnio e surpresa pela coragem do homem. Ou melhor, o escravo.
Silêncio.
-Pierre, eu admiro a sua coragem; talvez o seu futuro fosse mesmo nas Armas, e, quiçá, sua vida estivesse melhor nas campanhas que fizemos na Terra Sagrada em vez dos campos... retificarei aqui esse erro diante do semblante límpido de Deus; reconhecendo que, sem dúvida, o campo possui essa maldição... torna os homens cada vez mais preguiçosos e ociosos. O campo infecta a sua classe, vocês estão infectados! São tomados por pensamentos impuros quando estão longe da guerra ou dos propósitos da Coroa, ou melhor… quando estão distantes de Deus! O campo deveria ser somente um lugar para crianças e mulheres, e, como disse, esse foi o meu erro: colocá-lo de volta à banalidade de uma vida mundana! Você é um homem da guerra! Eu o deixei voltar com a sua família! Nenhum homem aqui nessas terras teve essa benção!! Precisamos de homens corajosos o suficiente para pegar em armas contras os infiéis, porém, não tolos o suficiente para desafiar com insolência seus mestres numa hora crucial!! Ingrato!
O eco pelas muralhas. O Cardeal prosseguiu:
– Mas … como eu disse antes, Pierre... hei de retificar esse erro agora! Guardas!!
Um comboio que fazia turno no gabinete externo do Cardeal adentrou a sala como um relâmpago. Cavaleiros empunhavam lanças enormes e afiadas como os dentes pontiagudos de Cerberus.
-Levem esse homem à masmorra. Amanhã de manhã ele será decapitado como exemplo a todos! Eu sou um homem justo! Justo! E não vou tolerar esse tipo de levante ou qualquer motim nas terras do Senhor! Leve a família dele às prisões  para morrer com os plebeus e os infiéis exilados nas trevas!
Pierre permaneceu no mesmo lugar, tranquilo. Ele sorria amargamente. Os homens, irmãos de armas, perplexos, não entendiam porque o bom Pierre deveria ser executado. Suas mãos eram atadas e colocadas contra a cabeça com violência.
-Homens, eu sou acusado de trair meu Senhor. Sou culpado deste crime, reconheço, mas esse homem enriquece às nossas custas com o nosso trabalho, submete nossas mulheres a trabalhos braçais intermináveis e a favores sexuais às escuras; todos sabem disso! Força nossas filhas a uma infância trancada, escravas dos campos e dos nobres que as violam à noite; nós, homens comuns, vivemos sem amigos, sem esperança, sem cultura! Somos subservientes e aceitamos essas condições! Sabem disso, não ?! Onde está esse Senhor e sua bondade?! Onde está a Terra Santa banhada com o sangue e crânios rachados de milhares de homens que eu matei com a minha espada? Homens de Deus também, eles eram pais! Pais, com mulheres à espera como vós!
Os homens o empurravam, perplexos com aquelas palavras. Em silêncio. Lanças cruzavam o seu pescoço à maneira da tradição militar da academia de Versailles.
-Sabem disso, não?
Gritou. Não houve resposta dos guardas.
-Malditos! Vocês sabem disso! Sabem melhor do que qualquer um!!

Na execução, Pierre gritou o mesmo protesto enquanto sua cabeça era colocada na guilhotina.
-Sabem que somos escravos, não? Não sabes, irmão Gerard? Por trás dessa máscara negra, sabes disso!!
Gerard era o seu melhor amigo. Em horas infelizes era o carrasco, pois era solteiro e testemunhara quimeras horríveis como pesadelos nas empreitadas nas terras infiéis. Era o seu amigo, companheiro de bebida e de lembranças de guerra. Trajava uma máscara horrenda de pano negro e seus olhos fitavam as lâminas afiadas e os olhos do amigo.
Puxou a corda.
Recolheu a cabeça do amigo que sangrava pouco. Sempre se impressionava com isso, com o fato de que o corte bem rente no pescoço provocava pouco sangramento nas ligações.
Enquanto estava prostrado e aguardando a lâmina, Pierre pensou na sua bela mulher viúva e na pequena Marie. Um sorriso lhe veio à face antes do derradeiro fim. O último grito que Pierre dera era o mesmo. Sobre todos serem injustiçados.
No fundo, alguns sabiam que isso era a mais cristalina verdade. Outros discordavam, beijando o anel papal do Cardeal. Alguns sabiam, outros não. O senhor do castelo prevalecia, levando o seu povo a crer que era o eleito para protegê-los, ainda que contra a vontade deles, os homens e mulheres se ajoelhavam a seus pés;  e quem era Pierre para contestar que a sua representatividade era inefetiva? Quem era aquele homem?
“Pierre era só um homem”, refletiu o Cardeal olhando a cabeça cortada de Pierre. Um só homem no meio de tantos, que beijam o anel do senhor do castelo. Ele não era nada, ele não contava. Ele era, afinal, só isso: um homem!
“Mas, talvez, secretamente, ele poderia se tornar o herói daquela gente suja e maltrapilha...”
Por um minuto, no âmago da sua indiferença,  o senhor do castelo ponderou que talvez a sua ajuda fosse prejudicial, que, quiçá, naquela praça teria auxiliado um mártir a forjar a sua própria derrocada...
..mas não.
Beijou o anel da sua mão. Ele precisava. Reconforto. Paz novamente. Era o mês de maio e todas as suas vontades seriam atendidas, pois o povo estava do seu lado.
Novamente, o silêncio tomou a praça com o final da execução e a vida seguia normalmente.