segunda-feira, 29 de junho de 2015

telemarketing of the dead - parte 3 de 3

Passamos a catraca. Batemos o cartão no sensor. Fomos revistados.
Tinha uma “pausa-reunião” de uma equipe no meio do caminho. E tínhamos que esperar, era uma das regras. A reunião era feita no meio do caminho, entre a passagem das alas e o refeitório. Tudo era meticulosamente feito para nos atrasarmos e dobrar períodos. Não era permitido falar durante a espera. Ficamos ali, quietos, esperando o término da reunião.
O supervisor falava de metas, motivação, dava umas broncas aleatórias na equipe, falava do sentido da vida, do feriado que teriam de trabalhar com orgulho, etc..
Eu dei umas olhadas marotas para ela vendo aquela cena. Ela retribuiu.
Disse no ouvido dela:
- Eu tenho um desenho desse supervisor lá no banheiro.
Ela riu. Baixinho.
Quando, finalmente, a pausa-reunião terminou, apressamos o passo. Passamos a catraca, batemos o cartão de acesso. A sala era à prova de som. Entramos na nossa ala. 
Paramos. A cena.
Um som ensurdecedor de desespero e trevas. Imagens de uma central de telemarketing.
O Angélico mordia a cabeça e arrancava um pedaço do cérebro do pobre cara do cubículo com bandeirinha. Destruição e morte. Sangue. Vísceras em cubículos. Gente dando machetada em chefes e funcionários, enforcamentos com fios de telefone. Gente mordendo a cara dos outros, arrancando línguas à força e abrindo barrigas com as mãos e dentadas violentas. Uns, mais desesperados que outros, quebravam os vidros e se jogavam pelas janelas. Ouvíamos os corpos caindo em cima dos carros no estacionamento. Um som horrível. Luta. Fome. Tripas e sangue em profusão pelos cubículos.
(imaginem isso em uma câmera lenta…)
Fechei a porta de vidro com força. Os mortos nos olharam.
“Uuhh, hueehhhh!!” – disse o Angélico, olhando para a nossa direção. Todos olharam com o barulho da porta. A carnificina fez uma breve pausa de três segundos.
Não pensamos em mais nada. Só havia o horror. Peguei na mão da Nadja (nossa, que macia…), saímos correndo em direção ao refeitório. Caos. Sirenes. Corremos em direção aos elevadores. Alguns corriam com o barulho infernal dos alarmes, outros empunhavam seus facões e gritavam “morte aos comunistas”, mas não ficamos para ver mais.
(imaginem isso, de novo, em uma câmera lenta…)
Foi como eu disse, todo mundo já esperava isso. Era um processo, uma mensagem em uma rede social. Um inferno de zumbis com camisas da seleção brasileira matando uns aos outros. O meu apocalipse. 
O nosso apocalipse.

(sobem os créditos da apresentação)

segunda-feira, 22 de junho de 2015

telemarketing of the dead - parte 2 de 3


Tomamos um café pela primeira vez. Eu e Nadja. Às vezes ela se sentava perto da minha equipe. Como aquele lugar nunca era organizado, trabalhávamos aonde dava. Nunca ficamos no mesmo lugar. E aquela foi a primeira vez que nos sentamos tão perto.
O dia prometia.
Ela me contou de um lance que tava rolando no Face, dos facões e das camisas. Era uma corrente. As mensagens falavam de corrupção, de exageros, de falta de liberdade. Criavam eventos e protestos em fins de semana. Como trabalhávamos no domingo, muitos funcionários estavam ali na empresa “protestando” com os trajes adequados e mostrando sua adesão à causa; enquanto a playboyzada voltava da praia em protestos organizados nos trânsitos. Nadja me disse que tinha até um protesto-micareta na praia para os que estavam com a família. Enfim, todos estavam protestando. 
Acho que só eu não sabia disso até então...
Um troço meio abstrato. Ela continuou:
- Eles mandam essas mensagens todos os dias!
- Caramba, Nadja, eu meio que saí do Facebook… Tava por fora mesmo. Sei lá, a minha vida não é tão empolgante quanto a dos meus amigos … mas, me diga, essas mensagens são tipo aquelas de Candy Crush?
Fiquei com uma cara de idiota fazendo a pergunta.
(ela me olhou com ternura. e explicou, toda bonitinha, ignorando o tom idiota da pergunta)
- Isso aí.. mais ou menos …
(continuou. arrumou uma mecha no cabelo que caía na testa. tão linda …)
- … só que é uma solicitação de um aplicativo que manda automaticamente para todos os usuários… como um vírus...
- Tipo Candy Crush?
Ela me olhou. 
...
- É, pensando bem …sim, é como se fosse Candy Crush! Uma praga! Nossa, eu tive uma epifania agora! Será que o Candy Crush é um vírus ideológico também? Um programa secreto?
Dei de ombros e disse: - Vai saber... Eu ri. Ela disse de um jeito tão divertido. Continuou: - Então... já que tem muita gente compartilhando essas mensagens, sem contexto algum ou questionamento, a coisa chega em todo mundo... Eles marcam um protesto todos os fins de semana, em atos diferentes, com coreografias diferentes. Por exemplo, hoje, é dia de protesto.
- Que protesto? Esse lance dos facões com purpurina? Pra quê?!
- Hoje, de acordo com o evento do Face, é dia demonstrar o repúdio contra os testes do vírus comunista em cobaias. Todo mundo tem que usar camisa da seleção e usar facões para matar os zumbis afetados pelo vírus.
Eu fiquei olhando um tempão para a cara dela.
Acho que, nesse momento, ela se assustou um pouquinho com isso.
- Como é que é, Nadja?! Nossa, eu preciso MESMO acessar o Face!!! Vírus?
Ela me explicou a parada. 
Didaticamente.
Rolava um boato nessas mensagens. Um rumor de que o governo testaria cobaias em um suposto programa secreto de imunização ideológica. O intuito? A agenda do programa? Tornar a todos comunistas. Com esse mote, e de acordo com o rumor e as mensagens do Face, o governo recrutava alguns coitados e ministrava essa droga como um teste preliminar de controle da população, implantando uma ditadura comunista no país. As cobaias recebiam uma bolsa-pagamento para tomar a droga. Uma espécie de Soma Vermelho. A corrente das mensagens se chamava “Fora Bolsa Comuna!!”
Era o nome que eles deram para a vacina... 
(bem...)
Eu tomei o café bem devagar. Degustava bem aquele papo e aquele nosso primeiro contato visual. Sim, aquilo tudo era uma bizarrice, mas...
- Nadja, bem “viagem” esse lance, né? Mas vai saber... essa não é a coisa mais estranha que eu vi no Face...
Ela riu.
- Poxa, se parece “viagem”? Tá me vendo com camisa de CBF e facões?! Olha esses babacas! Eu odeio esse lugar, um dia vou explodir essa pocilga. Eu vou sentar na bomba igual ao Holden Caulfield! Mundo besta abissal!
- … (suspiro)
(meu. deus. eu amo essa mina. eu amo. não consegui falar nada depois daquilo)
Nos olhamos. Duas almas-perdidas no refeitório tomando um café corrido e mastigando um pãozinho com manteiga às pressas. Sem direito a digestão. Fugindo do trabalho, tentando respirar um pouco. Tudo à volta ganhava um novo sentido naquele dia.
Passava um cara que era mó puxa-saco do Angélico. Tinha uma camisa da seleção brasileira e um facão que brilhava com uns adesivos da empresa. Ele fazia uma pesquisa com os funcionários, queria saber qual brinde preferíamos ao atingir a meta: um chaveiro ou um copo de plástico.
Aquilo era tão triste que nos entreolhamos, apercebendo-se do nosso dia de merda à frente...
- Vamos voltar?
- Vamos, já estourou a minha “pausa-banheiro”. Não posso tirar mais, Nadja. Agora só tenho a de almoço e janta...
- E a de medicação? A pausa da Fluoxetina? Você tem que usar! É o nosso direito!
- Não consegui uma receita, Nadja... esses médicos não são humanos… o RH daqui também é foda...
Ela me olhou com uma cara bonitinha de compreensão e ternura.
(ai, ai, essa menina …) Nos levantamos. Respiramos fundo. Olhamos à nossa volta. A preparação para o dia de trabalho estava nesse momento de contemplação das ruínas. Olhei para ela:
- Mas, vou te dizer, valeu a pena perder a pausa, tudo... Ela sorriu.
(continua)

terça-feira, 9 de junho de 2015

telemarketing of the dead - parte 1 de 3


De qualquer maneira até que achei bom eles terem inventado a bomba atômica. Se houver outra guerra, vou sentar bem em cima da droga da bomba. E vou me apresentar como voluntário para fazer isso, juro por Deus que vou.

O Apanhador no Campo de Centeio - J.D Salinger
Estranhamente, o apocalipse zumbi não foi lá aquela surpresa que esperávamos…
É. A sociedade toda já estava em um processo à época. Tão grande e avançado que, quando a coisa de fato aconteceu, todo mundo já tava ligado na parada saindo com um facão nas ruas nos primeiros dias.
Naquele dia não levei o meu, basicamente, porque não acessei o Facebook.

Cheguei no trabalho aquele dia. Peguei a fila do ponto. Bati o ponto. Passei o cartão de acesso. Fui para o meu cubículo. Coloquei os plugues do desktop de volta à tomada. Procurei a minha cadeira para sentar.  Não tinha, alguém levara. Tive que buscar um assento decente em outro departamento. Liguei a máquina. Fiz o meu login. Loguei no ponto virtual. Bati o ponto virtual. Iniciei o programa de chamadas. Loguei no programa. Liguei o terminal. Loguei no terminal. Procurei um headset. Não funcionava. Outro departamento, head… Testei o fone. Loguei na rede. Aguardei uns minutos. Loguei de novo… Loguei na pasta de e-mails compartilhados. Loguei a minha conta de e-mail. Fui à mesa da equipe. Aguardei a fila. Escrevi meu nome e horário de entrada em um papel xexelento. Fui ao meu cubículo. Loguei no meu terminal de chamadas. Iniciei o meu programa de mailing. Pluguei o fone do head.
Pedi permissão para ir ao banheiro. O supervisor disse que “uuuh”...Ok. A mesma cara de merda... o mesmo grunhido que significava, sempre, a mesma coisa: “espera uns dez minutinhos”.
Depois de um tempo a gente pega as manhas da empatia comunicativa do lugar.
Liguei para uns clientes. Dei uma enrolada. Derrubei umas ligações. Percebi que todos estavam com camisas da seleção brasileira e portando facões lustrosos. Devia ser algum dia temático que eu nunca participava. Uns exibiam uns cintos e coldres pintosos, cheios de adereços para encaixar os longos facões; outras, portavam bolsas adaptadas Louis Vuitton com slots adicionais de machetes desenhados pelo Alexandre Herchcovitch.
(até que esses eram da hora, cheio de caveirinhas e glitter, stáile …)
Tava com mó vontade (mesmo) de mijar e não aguentei:
- Angélico, posso ir no banheiro?
- Huh, huuuuh ...
Fiquei puto com aquele escroto. A mesma cara, o grunhido de novo...
- Poxa, mas já deu dez minutos! Posso usar a minha pausa de banheiro de 5 minutos para ir? Eu nem preciso tomar café, isso é secundário diante das minhas necessidades agora ...
O Angélico, um gordo suado-escroto do caralho e cheio de espinhas na cara, não respondia.
- Mano, na boa, tô pedindo com educação...
Silêncio.
- Huh, uaaah, heeeh...hueeeh...
Porra.
Que puto do caralho. Nem para responder direito, só resmunga o filho da puta...
Subitamente o desgraçado começou a gritar comigo. E partiu na minha direção balbuciando murmúrios e coisas sem sentido, todo putinho e babando ódio. Derrubou uma cadeira.
- Cara, na boa, eu pedi com educação! Para quê isso, ficar derrubando coisas?
A menina do meu lado, que nunca me dava bola, concordou:
- Poxa, Angélico, o cara tá querendo mesmo ir no banheiro. Não precisa dessa ceninha, né?
(ela era muito linda. eu fiquei olhando para ela com uma cara de “retarda”)
Nem percebi que o Angélico, o cara que estava com uns mil broches da empresa e uma camisa da seleção bem apertada em seu corpo (e portando um facão com uns inscritos bizarros de partidos), vinha na minha direção babando de ódio. A garota acompanhava a cena comigo.
Mas, nossa, ele era lento... Eu ia só ficar de boa e tacar um processo de assédio moral nesse puto. Andava como se estivesse em uma crise de sonambulismo. Andava com os braços estendidos. Que ridículo esse cara.
E, porra, que lentidão e escândalo… o cara andava e ia arrastando tudo no caminho: cadeiras, fios, teclados...
Sorri para a menina, ela retribuiu. Rachamos o bico.
(o nome dela era Nadja. nossa, ela era tão bonitinha…)
- Esse Angélico tá um pouco esquisito, não tá?
Ela me olhava com curiosidade. Respondi. Engatei o papo, muleque:
- Será? Não sei… até para dar esporro ele é meio retardado assim, né? Já aconteceu. O filho da puta não faz nada, fica no Face o dia todo, berra de vez em quando como um retardado só para mostrar que está trabalhando.  Detalhe: e anda lento pra moléstia … Nossa, olha isso… Grita direto e faz uma voz grave mó forçada para todo mundo ouvir, só que soa tão patético (e ridículo) que eu sempre vou no banheiro e faço uma caricatura dele na porta.
Ela riu.
- É sério! Às vezes eu tiro uma foto no celular dessas caricaturas e posto no meu fotolog, quer ver?
- Sim, vamos tomar um café?
- Opa!
Ela parou subitamente e me olhou com uma cara decepcionada. Dramática.
- Mas.. nossa.. (pausa) você ainda usa fotolog?
Eu ri. Ela também. Muito.
(deus existe. Nadja… )
Enquanto saíamos (e batíamos as nossas respectivas “pausas-banheiro” e deslogávamos tudo), o Angélico estava debruçado em um cubículo e se debatia violentamente com um outro coitado dando esporro. O cara só gritava de desespero. Esse cara era um campeãzinho de bater metas e exibia sua bandeirinha de atendimento Gold para todos verem. 
Tudo isso para tomar um esporro do Angélico, que parecia comer o cara vivo com tanto ódio que se esqueceu de mim.
Que babaca…

(continua)