ele viu que eu era um fudido, que tinha 5 reais na carteira.
e pediu a primeira coisa que viu, meu mp3zinho no bolsinho; bateu mó dó, mas dei aquela porra, que, com sorte, foi trocada por uma pedra de crack bem marrenta e ardida que tá até agora revirando na mente do fudido."
O texto acima foi um verdadeiro marco na minha carreira editorial.
Título: “meu mundo caiu, roubaram meu mp3”. Fonte: Book Antiqua. Tamanho 12. Espaçamento: 1,5.
Rústico, bem informal. O texto não passou pela revisão, pois isso era uma exigência do alto escalão. Tinha algo de cru nele. Algo que, supostamente, teria uma essência oculta. E, de súbito, os leitores o adoravam; questionavam se aquilo era verdade em uma revista sobre literatura que, ocasionalmente, publicava textos de autores amadores.
A coisa literalmente bombou...
E perguntavam: quem era o autor?
Eu, a princípio, não entendi o fascínio por aquele tipo de ficção; e questionei ao editor o verdadeiro porquê daquele tipo publicação ao estilo marginal e batido. Uma coisa meio beat revisitada, mastigada: cheia na literatura “de hoje”…
De imediato, veio a resposta em um e-mail secreto: descobri que o autor era o sobrinho do meu empregador. Parece que a nossa revista estava nessas ultimamente…
O texto, tão idiota a meu ver, pululou os comentários nas redes sociais quando publiquei o post da prévia. E as pessoas, ávidas por notícias e updates em tempo real, pediram e requisitaram uma entrevista com o autor. Ninguém reclamou; até porque a revista estava em evidência nas redes sociais com esse movimento.
Sobrou para mim essa tarefa. Confesso que tinha uma curiosidade mórbida.
Não foi muito difícil. Consegui o número do zap dele e, no mesmo dia, o obscuro autor confirmou a entrevista comigo na sua casa à noite, mais especificamente às 22:18 (!).
Cheguei ao endereço exatamente no horário, parando e cronometrando os segundos. Toquei o interfone no décimo oitavo minuto daquela hora. Subi pelas escadas de um BNH humilde e honesto. O apartamento era modesto e o autor era uma pessoa extremamente simples tanto em aspecto físico como na sua moradia.
Abriu espaço na sala por entre caixas; explicou que tinha umas coisas da outra mudança, etc. Eu realmente não me importei com isso.
Ao sentar no sofá, ele me pergunta:
— Sou um autor famoso agora?
Era difícil de responder. Eu pensei em todo mundo que morreu às mínguas, com um texto bem redigido dentro da sua gaveta empoeirada, e jamais teve o luxo desse tipo de questionamento…
Acomodei-me melhor no sofá e soltei a resposta quase como em um suspiro tímido.
— Não.. na real, acho que se trata só de um fenômeno viral, coisa passageira…
Fiz silêncio.
Ele olhou para o lado. Algo o distraía. Não sei se era a resposta e sua degustação.
Acrescentei logo em seguida:
— Mas isso é bom hoje em dia. De um jeito que nem eu sei explicar...
Fui sincero. Ele não se abalou com a resposta. Assentiu com a cabeça. Voltou o olhar da estante para mim e emendou:
— Então… aquilo que perguntam direto: foi verdade, me roubaram a porra do mp3, lá no centro, Terminal... drama de trabalhador, de fudido, de gente que não está aí nas briguinhas diárias intelectuais, acadêmicas… lógico, faz um tempão… mas aquele ali sou eu, foi desse jeito mesmo a parada… eu ganho a vida entre um trampo e outro, só gosto de escrever e cozinhar… não sou formado em nada, só vou sobrevivendo… hoje, ganho a vida em um balcão de turismo… se existe a arte, ela deve retratar e imitar a realidade… me falaram que até tem um nome para isso… como é mesmo?
Fez uma pausa para lembrar. Seu rosto era uma estátua confusa por alguns segundos.
— Mimesis!! Isso!
Ficou muito feliz por lembrar do termo. Fez um silêncio longo. Levantou. Disse que pegaria um café. Serviu dois copos e ligou a televisão, falando que era semifinal do campeonato.
E tudo que o autor tinha a dizer foi isso.
A entrevista, eu saberia depois, acabaria ali com a chegada do café. O São Paulo perdeu do Palmeiras. Depois do jogo me ofereceu mais um café, muito bom por sinal, conversou um pouco sobre como eu ia sair dali do bairro dele; me deu várias instruções de como evitar caminhos sinuosos, etc. Uma atenção estranhamente amigável e acolhedora.
Não me lembro do seu sorriso ou sequer da sua aparência naquela noite: era alguém de difícil descrição. Só me lembro dele acenando da janela do apartamento quando entrei no carro.
Posso dizer que ao final da entrevista, com aquele aceno de cima do apartamento, o considerei como um possível amigo. Ele me disse adeus, demonstrou uma preocupação…
É humilhante, mas fazia tempo que não me afeiçoava com seres humanos e jamais me preocupava com a questão. Até aquele momento que voltei para casa da entrevista...
Cheguei bem em casa.
De alguma forma, a obra dele fazia mais sentido agora.
No dia seguinte, escrevi uma nota sobre o curioso autor do texto do mp3. Todos se emocionaram com o relato da minha visita, solicitando de imediato que o sobrinho do editor se tornasse um escritor ativo da revista e do site. Um privilégio para um estreante. Se tinha mérito ou não, poucos tinham alcançado aquele patamar na publicação.
Na verdade, eu ainda relutava em aceitar aquele cara simples como um bom escritor. Talvez algum resquício de inveja? Jamais saberei.
Mas eu o admirava como pessoa. Mas não saberia dizer o porquê…
Ele soube da notícia da promoção rapidamente. Mandou-me uma mensagem dizendo:
“valeu pela nota mano/sou famosão agora? kkkk :)”
Eu respondi:
“sem dúvida”
Depois acrescentou outra mensagem:
“então mano, meu tio e eu somos muito afastados. uma relação nadavê”
Ele não disse mais nada depois.
No dia seguinte, submeteu à revisão outro texto sobre a nossa conversa que, basicamente, dizia que era mentira o ocorrido do mp3; que o povo não entendia a ficção, e que se esse fosse o interesse dos leitores, não deviam ler mais nada dele ou qualquer outro autor.
Eu li aquilo bem incrédulo. No fundo, torcia para ver mais textos com aquele estilo. Algo estranho percorria em mim sobre aquele cara; de admiração, passei a sentir raiva.
De novo, não sei bem se era raiva ou simples inveja por ele ter alcançado o que tantos escritores queriam… não sei mesmo; acho que me decepcionava comigo mesmo por não ter mais oportunidade de ter um motivo para falar com ele sobre textos e mais cafés. E por ele ter meio que me afrontado pela nota, fato que ele negou veementemente.
“nadavê, mano”
Tudo bem. A resposta foi publicada e os autores o leram com certa desconfiança.
Mesmo assim, pediu para seguir com o plano do editorial mensal. Escreveu mais um texto na mesma tarde e o enviou.
Sem rodeios: o segundo texto do autor foi um fracasso retumbante. Era quase uma tentativa de fugir do clichê anterior, mas que recaía nas mesmas armadilhas estilísticas do primeiro. Era confuso, misturava falas de personagens, sem coerência ou coesão… era uma história sobre um admirador de jazz que queria ir para o espaço em uma nave de papelão...
Detonaram geral. Pediram a cabeça dele. O editor concordou. Tudo tranquilo e natural para nós…
De fato, não era nada brilhante. Mal parecia a sua escrita. Nada tinha daquela essência magnética que me conquistara, que me fizera considerar uma amizade em anos.
Uma auto-sabotagem?
O cara simples, que tomava café e esquecia assuntos rapidamente, mal se abalou com as opiniões negativas. Enviou algumas mensagens me agradecendo pelo ocorrido; dizia que iria aposentar o celular.
Eu emendei:
“saudades do mp3? :)”
Ele prontamente respondeu:
“pode ser kkkk. valeu, vc é gente fina; qualquer dia a gente se fala”
Nunca mais nos falamos ou nos vimos. Jamais tive a vontade de ter amigos ou de escrever algo com aquela paixão que ele despertara.
Eu segui com a minha vida e outros textos. Dos outros, claro…
Depois do ocorrido, fiquei sabendo que o jovem escritor viajou para diversos países. Tornou-se pai em alguma aventura nos trópicos, visitava o filho e a mãe em uma regularidade exemplar, e descobriu a paixão por gastronomia e - dizem - que se tornou uma pessoa ilustre e respeitável em algum país exótico por aí. Não com a literatura. Não, não mesmo. A sua habilidade gastronômica garantira um certo prestígio. Esta era a sua narrativa. Passou-se um tempo. 8 anos.
Ele havia desistido da literatura.
(isso me tranquilizava?)
Pode ser...
O “hoje”.
Essa é a história de alguém que conheci na minha profissão. Penso que foi o escritor mais autêntico que conheci na minha longa vida no editorial.
Pouco se sabe sobre essa profissão, ou da dos outros. Sei que, na minha, todos se esforçam para aparentarem as pessoas mais experientes diante dos outros. Em reuniões, nos encontros bobos de cerveja, nas mensagens, no banheiro....
E se todos buscam — e ensinam algum tipo de experiência —, colocarei a minha teoria sobre o ocorrido com o jovem e aquele seu texto aqui nessas páginas secretas.
O povo quer a verdade, gente. Ler esse tipo de coisa.
Deem a verdade aos que a procuram. Não é sobre ficção ou não ficção, gente. Na dose certa, deem a verdade sem um exagero evidente.
A mentira, essa derradeira, eu não quero na hora que me roubarem o mp3, celular, dinheiro; pois nóia não brinca em serviço quando encara a gente no meio da porra da cidade e no aperto gangrenoso da madrugada…
Só a verdade interessa aos que se importam com o caralho da manutenção da vida. Gritem a verdade! Mimesis!!
O resto é um café de noite assistindo um jogo qualquer… aquelas pequenas trivialidades que nos mantém sãos e salvos das garras do acaso. Um grito no meio da noite. Todos sobrevivendo e pagando os boletos.
(e esses parágrafos e estilo acima? Maldito escritor dos trópicos…)