Agora. Oito e meia da noite. Cenário: uma sala de estar. Sofá, mesinha de vidro no centro, toalhinha, tevê na estante e umas fotos espalhadas sobre um móvel achado na rua. Um quadro pendurado na parede, abstrato e exageradamente colorido. Personagens: Marília (Má) e Lara. A primeira tem 25 anos e a outra, 28; Marília, a dona da casa e da sala de estar, acabou de pintar o cabelo de uma cor experimental e Lara passou lá para ver a novidade e aprovar, tomar uma cerveja e falar besteira depois do trabalho. Marília está desempregada: trabalhava em um escritório de advocacia com pesquisa e, ocasionalmente, ajudava com os contatos com os clientes; foi mandada embora após 3 anos em um estágio que se estendeu longe demais. Lara faz edição de vídeo de um programa de muito sucesso na tevê paga e consegue pagar as contas com uma bela sobra. As duas, senhoras e senhores, neste exato momento, discutiam sobre o preço da bondade e seu efeito na humanidade. Não era uma reflexão profunda como o tópico da noite sugeria: apenas um monte de observações e algumas frivolidades entrecortadas com álcool. Ambas estão sentadas no sofá, e está passando na tevê uma série sobre uma família de anões. Marília adora o programa, e Lara fica dividida sobre a qualidade desse “entretenimento” (aspas dela), ou se as tomadas favorecem a edição/se o roteiro acaba valorizando a “intenção” do programa. Marília falava sobre a bondade e felicidade enquanto observava o programa, e soltava comentários sobre as imagens de uma antiga tevê de tubo.
– Anõezinhos e anãzinhas... tão fofinhos!
– Pegaria, Lara?
– Não, para …. tudo tem limite … depois do que eu já passei com gente mimada, acho que me lembrariam uma criança, sei lá … Seria estranho trepar, né?! Como será que...
...
Marília riu. Era sexta-feira e as duas não se importavam nem um pouco em ter que ficar em casa bebendo e vendo tevê/discutindo assuntos aleatórios.
– Esse casal é meio bizarro, né? Os filhos são bonitinhos, acho que vão se dar bem, se pá …
– Má, qualquer um se dá bem nessa brincadeira, qualquer um se arruma, mas precisa ter a vontade de se dar bem, né? Esse povo que fica reclamando “que quer um amor, que quer dormir de conchinha” e fica em balada ruim, com música ruim, de sexta a sexta, gritando um na orelha do outro e conversando sobre um monte de besteiras tem que tá a fim disso... esse tipo de gente jamais quis encontrar um amor ou porra nenhuma, para arrumar alguém só tem que ter um pouco de "cojones" e estar a fim disso; ficar indo em balada barulhenta dando beijinho e trepando ocasionalmente é meio que uma escolha neutra. Já fiz muito isso, e tava ok no momento. Se todo mundo tá de boa assim, deveriam se aceitar, e não há nada trágico nisso... agora, filha, não fica reclamando pras “amiga” no Face postando fotinho de coitadinha se você não quer isso… até uma anãzinha, qualquer uma pode se arrumar, poxa... mas precisa estar disposta a isso.
Marília ficou pensativa.
Lara cortou o silêncio, dando um gole na cerveja.
– Precisa ter saco, coragem para amar alguém, para assumir isso... Pra buscar isso. É uma escolha. Uma escolha foda se pá...
Marília jogou a cabeça para trás. Apoiava o peso no sofá.
– Acha que eu me “arrumo”, Lara? Eu não quero no momento, sério, não quero ninguém; não quero trepar, não quero beijar, não quero Tinder apitando, gente me mandando mensagem a toda hora; eu tô a fim disso, sabe, de ficar de boa…
– E eu respeito! Porra, se respeito! E eu estou completamente bêbada...
As duas riram muito. Lara continuou:
– Essa é a tua escolha, porra! Você tá ótima, todo mundo fica falando que você tá bonita, tá mais sorridente, mas isso um dia passa da forma que você decidir… agora essa autopiedade de todo mundo me enche o saco! - Lara estava indignada.
Marília riu.
-Eu acho que me arrumo, mas acho que eu sou muito "boazinha"; a merda sempre ronda a gente, Lara. Sempre.
-O que quer dizer com isso? Que você é tão cheia de virtude que é incompreendida? Para com isso, Má! A gente é tão tosca, zuada, e cheia de defeitos como todos; a bondade é o quê?! “Ser fiel, ser correta, filantrópica, dar esmola”?! Isso tudo é indiferente, não conta ponto em nada; sabe o porquê? Porque essa tabela não existe!
Marília levantou.
– Quer outra cerveja?
– Ãhan…
A família discutia. Anões discutiam.
– Eles querem ser felizes. - disse Marília da cozinha
– Eu acho que eles são… - Lara disse baixinho no sofá; olhava os anões sentados na mesa e comendo um jantar farto.
Marília voltou.
– Toma! – jogou a latinha.
– Opa.
Barulho de latinha abrindo.
Olharam o casal dando lições de moral aos filhos.
– Será que todo mundo vai ser feliz nesse mundo, Lara? Porque, sério, olhando esse programa de anões, eu acho que eles são felizes, sim, mas não me parece que o mundo, o pessoal que trabalhava comigo, minha mãe, o tiozinho do dog da faculdade… sei lá, eu não sei o que é essa porra de felicidade que tanto falam. Eu acho que a felicidade é tipo um câncer que te come e te faz arreganhar a boca e dar risada de qualquer questão idiota.
Lara riu.
– Você tinha que ver a sua cara agora, olhando para um ponto imaginário lá naquele quadro horroroso e divagando “esses anões são foda demais e a humanidade é uma bosta”. Foi muito bom!
As duas riram. Ficaram em silêncio.
A TV despejava um monte de coisas sobre anões e família.
A TV despejava um monte de coisas sobre anões e família.
– Lara, eu acho que a gente é amiga, que a gente dá risada de um monte de coisa que só a gente riria … e isso é um pequeno pedaço do paraíso vindo numa prestação que vai demorar para fazer sentido, que é a felicidade que tanto falam em comercial de manteiga…
-Manteiga, não! Margarina, por favor.
Deram mais uma risada se entreolhando. Riam de besteiras.
– Mari, a vida é isso: esse monte de gente falando sobre a felicidade e a gente assistindo no sofá; a pergunta é: "você quer ser essa família"?
Silêncio.
Marília olhou para baixo e respondeu.
-Não agora.
-Nem eu.
Olharam a vida da família de anões e ficaram em silêncio durante um bom tempo. Depois disso, voltaram a falar sobre frivolidades. Num dado ponto da noite, Lara decidiu ir embora. 1 e meia da manhã. Marília chamou um táxi para Lara. Se despediram.
– Um beijo, sua depressiva-admiradora-de-anões!
– Um beijo, sua dissimulada metida a Mestre Miyagi.
A sala vazia.
A TV ligada pela madrugada.
Um silêncio.
O quadro horroroso.
Marília suspirou.
Subiu ao quarto com uma cerveja na mão. Ligou a pequena TV. Barulho de estática, não tinha TV a cabo no quarto; lembrou que a antena quebrou e precisava comprar outra. Desligou o controle remoto. Um silêncio absurdo. De repente tudo tava tão esquisito. Apertou o botão do celular e ligou a lanterna; iluminou todo o quarto. Riu um pouco da cena, da luz iluminando aqueles móveis, das sombras. Continuou bebendo sua cerveja deitada na cama. Depois de um tempo, a lanterna do celular apagou. Tudo parecia melhor assim...
Continuou bebendo mais algumas latas. Na cama. Só pensava. Lá fora uns barulhos de garrafas contra a parede, um estrondo distante, gatos no cio...
Ligou o celular e digitou uma mensagem.
Continuou bebendo mais algumas latas. Na cama. Só pensava. Lá fora uns barulhos de garrafas contra a parede, um estrondo distante, gatos no cio...
Ligou o celular e digitou uma mensagem.
“Lara, eu te amo. Sempre te amei.”
Depois apagou a mensagem.
– Não agora, agora não…
…
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