quinta-feira, 20 de março de 2014

belladonna

Lavou a mancha enorme com muito sabão e água da pia do banheiro.
– Deixa escorrer bastante água. Esfrega mais forte!
A mulher ficava na torcida; aflita, levantava as mãos em desespero, não suportava a sujeira tomando conta do tecido. Uma mancha de café, morosa, tomando o verde-claro da camisa. Um pensamento terrível para ela. O chão todo molhado, o tapetinho ridículo sob os pés do casal.
– Não foi nada, Bia. Tranquila, amor.
Olhou para esposa, sereno. Ela ajeitou os óculos.
– Eu… (soluço) sei lá … Eu não queria ...
Olhou para baixo.
O cara respirou fundo, de saco cheio.
– Sério, Bia?! É só uma mancha de café, porra! Não foi culpa sua, linda.
E a olhou com ternura.
– Na moral, esquece isso. De verdade.
Bia desabou a chorar e o cara a abraçou bem forte.


No dia seguinte ele não estava mais na cama. Levantou cedo e foi trabalhar na serralheria da esquina. Moravam há um ano e meio de aluguel nos fundos de uma casa velha, a proprietária era uma senhora meio burlesca, que parecia uma caricatura de dona de bordel de filmes de gangster.
“Ela só é exótica” - pensava Bia.
Sozinha em casa. Um terror cotidiano. Desatou o dia a andar pela sala sem parar. Parou. Fumou um cigarro. Começou a escrever no computador. Era redatora, fazia bico para um monte de publicações. Trabalhava em casa. “Um trabalho bom”, pensava. O foda era o marido na rua, doze horas esmerilhando as mãos -  e o orgulho -  em um monte de banquinhos sem graça e cavalinhos de brinquedo.
Um café. Só isso, era o que precisava naquela manhã.
“Não, melhor não…”
Lembrou da mancha. Do café na mesa. Cacos de xícara de porcelana no lixinho que ninguém sabia abrir da cozinha
Dia anterior. O marido chegara em casa mais cedo, depois do trabalho, exausto, sujo; ia tomar o café que estava na mesa. Ela viu o marido, tomou um susto. Terror; se aproximou rapidamente, deu um beijo nele e  - de um jeito desajeitado e violento -  esbarrou no braço que segurava o café. Derrubou tudo, café e xícara no chão. Porcelana, dragões, ninfas. Queimou de leve os dois. Disse ao marido que o café estava frio. A mancha, enorme. Um tumor. Metástase de cafeína. Os dois no banheiro. Que porra ...
"Não, deixa eu tomar um chá"
Lembrava. Não achou a camisa manchada. Vasculhou a casa toda. Por fim, desistiu. Quando foi jogar o modess no lixo, viu a camisa verde-claro e a enorme mancha entre papéis higiênicos de resfriado e merda.
Pegou um pedaço de papel higiênico limpo e a retirou do lixo.
Cheirava mal.
Ela chorou. Muito.
Jogou de novo a camisa no lixo. Deitou na cama, ligou no trabalho e disse que não poderia entregar o rascunho prometido, disse que tinha consulta marcada, algo assim. Acreditaram.
Queria dormir, não conseguia. Nove horas da manhã. Ainda. Dia lento, arrastado. Enxaqueca, cólica do caralho.
Procurou algo na caixa de remédios para amenizar a dor.Tomou uns remédios para insônia, legalizados. Deitou no sofá da sala.
Adormeceu vendo “I Love Lucy”. Preto e branco. P & B.
Acordou no hospital. Noite. O marido a olhava, desesperado.
Overdose, soro, lavagem estomacal.
– Tudo isso por uma camisa, Bia! Era só uma lembrança! Um treco, um presente... só isso! Porra, sua maluca do caralho!!!
Ela não disse nada, não esboçou nenhuma reação. Os médicos os deixaram a sós. Sabia que tava tudo acabado; aquele silêncio, cheiro de corredor, formol, que aquilo tudo era longe demais, mas não era bem o que tinha acontecido e seria difícil, impossível explicar. Só estava com uma dor de cabeça tremenda, melancólica, ansiosa e com sono. Tomou os remédios no desespero, ingenuidade, a cabeça explodia, só queria acordar mais tarde, quando o marido chegasse do trabalho… eram dias estranhos. Teve um sonho em preto e branco, só estava exausta.
Mas ninguém entenderia isso. Era uma maluquice plausível, e tava tudo bem claro: ela era uma maluca superprotetora, com baixa autoestima e que chora por manchas de café numa camisa que deu de presente para o marido no dia mais importante de sua vida. É, era bem compreensível: se ela fosse o marido, daria o mesmo entendimento a tudo. “Foda-se, mais um para a lista”
Ficou sozinha. Ele foi embora. 
Ela sorriu, pois era tudo uma leve ironia, sutil e brilhante: a mancha de café, o dia anterior à mancha: ela sentada na mesa olhando para o café (que seria derramado) durante horas, a enxaqueca...
O casamento acabou. 5 anos. Tudo por causa de uma mancha de café na camisa e uma sensibilidade fudida e ridícula; foi aconselhada a fazer sessões de terapia. Um ano depois já estava namorando, indo para a academia, fazia Muay Thai de manhã, trabalhava em transcrições de textos para braile à tarde, morava no Centro e se recuperava de uma cirurgia na córnea que deveria ter feito há muito tempo.
Fez o que deu vontade, tudo que estava em listas e agendas, em promessas de ano novo, o que tinha acumulado; e podia se dizer que toda aquela merda do ventilador ficara para trás. Não queria morar com o novo namorado, a verdade é que se davam bem distantes um do outro. Se amavam.
Tudo isso por causa de uma mancha de café.
Um café que continha veneno e estava na mesa...

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