segunda-feira, 17 de setembro de 2007

tem vodka na casa de jesus?

Velhos irlandeses gritando comigo pelo mp3 na Doutor Arnaldo, em frente ao Araçá às onze da noite:
"They wanna have me here

Have me and hold me near
Hold me down fasten and tie
But the cars are all flashing me
Bright lights are passing me
I feel life passing me by"

E eu ali, gritando a letra e nem me dando conta: como aquele garoto do "About a boy" quando ganha um discman, sozinho no ponto a caminho de casa...
Sentado na barra dos bancos do ponto do busão e vendo aquelas luzes dos carros cegando os seus olhos há muito tempo, uma sensação velha e a expressão entediada esperando algo que você sabe que vem mas não sabe quando, em forma de placas de ônibus que estão distantes e aos poucos vão formando um nome que você nem sabe onde é.Mas naquele momento eu cheguei a sorrir e cantarolar, pois era perfeito gritar a letra enquanto os carros passavam apressados: um caso de sincronia incomum entre velhos punks irlandeses; uma música perfeita na hora certa quase como naquelas vezes que você goza junto com a garota que você ama, aquele aperto forte e mãos entrelaçadas como se fossemos petrificar ali para sempre numa escultura de cobras com as presas sangrando umas nas outras, com aquela sensação indescritível dizendo aquelas palavras...
Um carro passou a milhão com o som no talo, aquele "Nóis trupica mas não cai":
-Aê ,xarope !Vai demorar hein?!
FUU-FUUUUMM-buzina.
Uma risada de hiena geral dentro do carro, naquela velocidade não deu tempo de pensar e nem de ver um cara do meu lado gritando:
-Morram na esquina que o Cemitério já tá aqui ó, seus merdas!
Um sujeito saído diretamente daquele universo paralelo das pornochanchadas dos anos 70 e incrivelmente parecido com o Paulo César Pereio: vestia um terno todo fudido e uns óculos escuros emendados com esparadrapo.Gritava com uma puta voz de manguaça essa frase imortal.
-Bando de babaca ducaralho,né patrício?
-É, podecrê.Eu no meu íntimo faço um esforço psíquico para que eles vão para o céu dos peões.
-Peões?Esse bando de chupa-teta de mamãe?Eles se dizem cowboys, patrício!Cowboys!-deu um puta grito balançando a cabeça negativamente com raiva.
"Caralho, é ele mesmo?!Será??"
Puta doença de retardado que eu tenho: dificuldade de reconhecer rostos e coisas óbvias.Coisa de TOC mesmo.Deixa a gente louco.
-Eles lá conhecem Alvarenga e Ranchinho?Tião Carreiro e Pardinho?Tonico e Tinoco?Cornélio Pires?
Nem eu conhecia essa porra de Cornélio Pires; só depois pesquisei e descobri que simplesmente foi o criador da música caipira.Respeito.
-Acho que não.Você viu o adesivo no carro?
-Eu sou praticamente cego, poorraa!Não vê não?
Eu me senti idiota .
-Vai um whisky aí?!
Eu ia responder sobre o adesivo, mas ele sacou do seu paletó uma daquelas garrafinhas de metal prateadas de bêbado profissional e eu fiquei embasbacado e hipnotizado: é um dos brinquedos que sempre quis ter nessa vida (esse e aquele maldito robô Ar-tur que tinha o meu nome e eu nunca tive...), e a dele era muito foda: brilhava muito como um Graal dos pinguços contra as luzes da noite de Gotham, só que era de prata.
-Tem copo aí ?
-Não, mas tenho uma garrafinha de água mineral.Peraí.-comecei a fuçar a mochila.
-Deixa eu descansar minha pobre carcaça etílica.
Sentou do meu lado .Uma figuraça difícíl: empurrava com o indicador direito os óculos escuros remendados que pendiam quando se inclinava para falar numa voz grave para caralho e fazia aquela cara de dor característica que a gente vê nos que bebem honestamente pela noite; o cara era gente boa.Gostei dele .
-Puta mochila fudida, patrício!Achou no lixo essa poorrraa???
Eu rachei o bico .
-Eu tinha uma que usei por dez anos, ela se chamava "Trapz" porque parecia um trapo gigante, hehe.
Ele não deu uma risada: apertou o óculos e fez uma cara feia.
Apontou para o meu Graal e disse:
-Sabe o que é isso?(Nem esperou minha resposta)Johnnie Walker Gold label.Sabe quantos anos tem essa porra?
-18!!-se caísse no vestibular...
Fez um gesto apontando os indicadores para mim uma três vezes, como que dizendo:"Seu viadinho, não era pra responder!".Depois levantou a garrafinha e apontou com o indicador direito dizendo baixinho:
-Já tomou?
-Não, caralho!!
-Nem eu!E olha que eu já tomei até aguinha de lixo numa aposta, sabe aquelas que ficam acumuladas no saco preto do danado?Peraí: toma um pouco e seja abençoado, meu filho.
Rachei o bico tremendo enquanto ele despejava uma bela quantidade na minha garrafa toda amassada.
-Sabe onde eu tomei e roubei essa poorraa?
Dei de ombros como nas caricaturas .
Se inclinou e disse no meu ouvido:
-Na festa de Jesus.Uma casa.
Eu balancei a cabeça afirmativamente como se aquilo fizesse o maior sentido(até cocei o queixo e olhei para o céu escuro), mas na verdade o que eu queria dizer era que ele tava mais bêbado que um gambá e aquilo não fazia o menor sentido para mim, como aquela letra da música "Vermelho","vermelhou no curral "da Fafá de Belém: uma vez um cara me disse que era sobre o comunismo e eu rachei o bico sarcasticamente como a Bruxa do Mar do Popeye.
-Peraí, você disse sobre céu dos peões, né?É católico, cristão?Essas diversidades?
Hehehe, diversidades era foda...
-Então (continuou), tem uma entrevista na entrada e você pode dizer o que quiser para entrar, só que tem duas perguntas que deve responder certo.
Eu:-Hum...
-Acredita em Nosso Senhor Jesus Cristo como Salvador?
-Você tá perguntando para mim?-Disse eu confuso.
Apertou o óculos e continuou:
-È claro que você vai dizer sim, né poorraa!!
Essa me ofendeu, me senti idiota ...
-Qual a senha?-emendou .
Eu:-Hum...(caralho de história surreal, essas figuras me param pela cidade-pensava...)
-Jesus fartura!!!
-Caralho!!!Tem uma placa dessa perto de casa!-eu apontei para ele impressionado.
-Uiui uiui-Começo a cantarolar a música do Arquivo-x.Comédia.
Deu um tapinha nas minhas costas e começou a balançar a cabeça como se aquilo fizesse sentido.
-Bebe essa porra.-disse calmo e com uma expressão de serenidade.
Bebi.Caralho, que whisky bom: descia que era uma beleza, não era nada parecido com os gorós de terceira que eu havia tomado, nem tomava muito whisky porque achava que era um troço que estava restrito aos bebuns com grana e eu era aquele cara que escolhia as vodkas nos supermercados 24 hs com a etiqueta vermelha de promoção.
-É uma festa ducaralho: tem rola e buceta para todas as finalidades e destilados a dar com pau.
-Tem vodka na casa de Jesus?
Me deu um tapinha nas costas.
-Eu vou te dar a letra, patrício.Mas eu não posso voltar lá...
E eu balancei a cabeça.Fazia sentido .
É..

2 comentários:

  1. Foda Marquinhos, foda! Muito bom mesmo.

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  2. Valeu,Pablo.Mesmo.
    Se você gostou ,eu acho que essa história tem continuação,outro dia quando tiver mais sossegado e sóbrio coloco ela aqui,beleza?!
    Abraço,cara.

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