quinta-feira, 15 de maio de 2008

um beijo escondido , harmonica ...

Eu nunca aprendi a tocar gaita.
Quando tinha uns dez anos , ganhei uma de meu pai após encher tanto o saco dele :ela veio diretamente de algum canto do mundo , para o Paraguai onde meu pai árduamente trabalhava trazendo bugigangas de lá .Ela estava lá numa caixinha linda ,retangular com bordas verdes e dentro tinha um paninho rosa de veludo para embalá-la quando dormisse ou para tirar a babinha que ficava nos buraquinhos de madeira em seu interior ; era toda revestida de um metal prateado.
Como brilhava...
Ela era linda , a minha gaita.Minha harmonica .Eu tinha ciúmes dela : quando chegava da escola , ia ver se estava lá no mesmo lugar e se ninguém tinha mexido nela .Se mexessem eu ia ficar enchendo o saco que nem criança implicante e marrenta que briga por nada ,tipo pentelho mesmo .Mas era só para ouvir a minha voz mais alta , queria que ela , a minha voz , ficasse tão alta que fizesse amizade e depois namorasse com a gaita .Que a minha voz fosse forte .
Descobri depois de um bom tempo que se a gente soprasse nos orifícios mais acima , o som saia diferente e se a gente puxasse o mesmo sopro para um lado , o som saia meio bravo , como a voz de alguém que te diz algo meio puto e taca os pratos da mesa na parede no jantar ; se a gente soprasse para o lado oposto , saia que nem voz de menina.
Minha gaita era o bicho ,maluco.
Eu assoprava ela por horas durante as tardes , e deixava os cachorros loucos uivando ; de tanto uivarem perto de mim , acabei conseguindo imitar um cachorro uivando e fazia o meu uivar sem a gaita.E ficávamos uivando ,cachorro curte uivar .
Acabei aprendendo isso .
A gaita me ensinou a chorar que nem cachorro , me estimulou .
Mas eu não sabia tocar a gaita .Mas não chegava a ficar frustrado ou puto por isso na época .
Eu queria ser um daqueles bluesman , tocando uma nota triste nela , ficar bem gordo e viver de música pelas estradas ; talvez eu venderia a minha alma pro Diabo para aprender a tocar um blues de verdade que nem Ralph Macchio em "Crossroads" .
Será que ele me ajudaria?O Diabo ??
Já parei para pensar .
O tempo passou e eu continuava soprando ela de um jeito ridículo : nunca consegui fazer uma nota decente nela e ficava horas azucrinando a vizinhança com aquele barulho que era um pé no saco de irritante.Irritante como eu .Eu tinha noção disso ...
Depois de tantas coisas difíceis , eu pegava a minha harmonica e ficava ali soprando ela até me acalmar ,até a voz sumir num protesto tímido do Drummond ; ia para baixo da minha cama e ficava olhando pro estrado.A voz e aquele sopro que não serviam para nada .Não produziam nada ,era um choro grotesco , vergonhoso ,embaraçoso pra caralho .
Uma vez ganhei de uma vizinha nossa um projetor bem safado de slides .
Quando não tinha ninguém em casa , eu ia para o quarto da minha mãe , apagava todas as luzes , trancava o quarto e ligava o projetor que era nada mais nada menos que uma porrra de uma câmera de plástico de brinquedo bem vagabunda com uma luz que saia para fora e era só encaixar as "fotinhas" no bico e ver elas enormes .Umas fotos de animais e troços de Biologia.
Mas não tinha tela para ver bonito e eu ia na cama da minha mãe , deitava com a cabeça na cama e projetava a foto de um tucano , uma onça e depois deixava aquela imagem enorme parada ali no teto ; pegava a harmonica e ficava choramingando notas que não eram nada , eram sopros , eram gritos de fúria encarcerados em alguém que crescia rápido e de uma forma desordenada .O vento era o que saia da gaita , não música .Era nada.
Meu irmão era muito talentoso com música e a gaita se deu melhor com ele de uma forma alma-gêmea : tirava umas notas , nascia um blues poderoso no sopro dele de forma fácil .Depois de ver a harmonica de namorinho com ele , soprando graciosamente melodias com ele , acabei aceitando que eu não tinha as manhas com ela e fiquei triste pra caralho .Enfiei a viola no saco e saí andando até a praça Pôr do Sol .
Ele , meu irmão que pedia direto a gaita e eu sempre dizia que era minha , acabei um dia dizendo meio frustrado ,derrotado :
-Pode levar , vai...
E lá ia ela ,contente na mochila dele .Foi para Bauru e uma pá de lugares cantarolar blues de verdade para garotas apaixonadas tomando cerveja .
Caralho , eu nunca consegui tocá-la direito , gaita ...
Mas eu juro que se eu subir agora lá no quarto dele e te achar num canto toda empoeirada e suja , juro que te dou um beijo de verdade , sem nojo ,gaita ; e vou ficar soprando você até me acalmar , até a voz e sopro sumirem , até a garganta doer e talvez , talvez nós vejamos aqueles pássaros e onças que se mostravam no teto tão enormes só para nós dois quando éramos mais novos .
Será um segredo só nosso.
Eu ,você e minha boca cheia de poeira .

3 comentários:

  1. Lindo, lindo mesmo!
    Remete aquelas coisas da infancia q a gnt põe na cabeça q quer fazer, quer aprender mesmo não levando jeito algum para coisa, criança tem dessas coisas, uma delícia!


    bjão!

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  2. Grande Marquinhos.
    Você já chegou a pensar em compilar tudo isso para publicar (de verdade) um livro de contos? Olha que eu acho que teria editor interessado, viu...
    Muito bom.

    Abraço,
    Rai

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