quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

con ti se va mi corazón (ou como nos tornamos reis) parte I


I
Faz um bom tempo que eu tava lá, remexendo num monte de tranqueiras no sótão dessa casa velha, um reino de poeira acumulada, castelo de livros carcomidos por vermes e que provavelmente não foram lidos na última geração. Livros, livros inúteis, pencas deles, e palavras igualmente dispensáveis. Manuscritos legados a uma posteridade que jamais herdou uma geração digna, ou quem sabe, jamais achou leitor e nem achará; um troço feio que busca olhos desatentos.
Estávamos aqui há uma semana e as coisas não davam mostras de que iam melhorar: Christine e eu não nos olhávamos mais como naquela primeira vez em que a vi no ônibus da faculdade com aquele vestido branco e azul mostrando os seus ombros, e na primeira semana que chegamos aqui na tentativa de que “algo” volte (mesmo que não saibamos ao certo o que é), eu andava por esses quartos com lençóis em cima dos móveis parecendo um fantasma em cada canto vazio dessa casa. Nada luxuosa a minha queda: bebia a melhor cerveja com tampa enferrujada que achei embaixo da pia nessa casa (nova) e velha para nós.
Uma vez (era tarde) sentei na mesa enorme e peguei uma caneta, tentei escrever tomando a cerveja ferruginosa.
Letras expelidas no papel saiam como na época da faculdade em que ia para a biblioteca, baixava um santo em mim: palavras desconexas, diversos erros ortográficos em uma linha nada reta de pensamentos aleatórios, e a narrativa que lembrava uma cabeçada violenta no banheiro da casa. Nada fazia sentido. Me sentia burro lendo aquelas palavras. Rasgava as folhas e jogava no chão sujo. Um gosto metálico descia a garganta.
Um sótão cheio folhas de caderno amassadas.
Tentava escrever sobre a perda de estar com alguém que não me deseja mais. Texto patético, ruim e de extremo mau gosto; apelativo e mesquinho. Uma merda escrita num lugar empoeirado.
Nada se encaixava. Naquela noite subi ao quarto e deitei com ela. Dei um beijo em seus ombros e ela não me disse nada. Se estivesse morta eu só ia saber de manhã, ser cúmplice de algo...
Às vezes desejei isso: que a única maneira dela não responder aos meus beijos era estar morta, fria; eu, eu achava que seria uma justificativa aceitável para tanta apatia...
Me tornei um babaca depois de velho.
Numa noite dessas decidi pegar um daqueles cadernos carcomidos no sótão velho, soprar poeira alto no teto e ler algo que refletisse uma pessoa, alguém que conseguisse elaborar uma coisa que realmente sentiu e que me fizesse seguir as páginas como uma reta pintada no chão que nem os tijolos amarelos de Dorothy.
Uma história: um andamento, linear e nada disperso. Algo que não fosse eu.
E lá eu encontrei uma caixa cheia de cartas escritas a mão chamadas de “First Impressions”. Velho demais, muito.
Era fantástico. Falava muito de casamento de uma forma que eu não conseguia imaginar, de amores e de algo que tava escrito numa época longe dessa, uma passagem para o desconhecido, um tempo onde não existiam momentos nostálgicos de mulheres com vestidos brancos no ônibus; só espartilhos, decotes lindos e toneladas de roupas.
Christine não notou a minha ausência no sótão lendo esse caderno algumas noites. As primeiras noites naquele lugar. Tínhamos que buscar o “algo”. Eu tava lá, lendo.
E era perfeito dessa forma.

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