terça-feira, 5 de janeiro de 2010

con ti se va mi corazón (ou como nos tornamos reis) parte II


II
Era estranho ler algo num inglês arcaico que se desfazia em suas mãos.
Inglês clássico, a letra linda de uma mulher que devia ser muito inteligente. Gostaria de ter assistido e entendido mais as aulas de Literatura e História na escola para entender o valor do que estava ali em minhas mãos, apodrecendo num sótão que veio de brinde com nossa casa nova. Um sótão. Um canto escondido para eu enterrar ainda mais o meu casamento aqui, escondido entre morcegos e bosta de rato.
Casamento. Fala-se muito disso no manuscrito, como se fosse importante e determinante naquele período. Como se “fosse”.
Penso, penso no casamento em passagens de campos verdes das palavras dessa mulher das cartas estranhas que continham uma história enorme. Uma caligrafia irritante de tão reta e bonita: só faltava a escritora ser linda também. Penso nessas coisas bestas, estou velho e sentimental demais, lendo um romance de senhoritas apaixonadas: é o câncer para os homens escrotos.
Gostei de como o texto me conduziu pela estrada de tijolos amarelados logo na primeira frase, rumo a um período que é tão distante e tão perto de mim, e que evidencia como o status influencia o andamento de destinos e gerações àquela época, grana, e em alguns casos, também o amor nesses casamentos. Ainda era assim, vai.
As páginas tinham uma coisa apelativa pra mim. Era o momento, cara.
E lá (nessas páginas), existem essas donzelas saltitantes de faces ruborizadas numa cidadezinha do interior da Inglaterra, foca mais na história dessas quatro mulheres jovens que fazem parte de uma família não muito rica: uma delas é muito bonita, outra só “bonita” e as outras duas são interessadas em militares; são jovens demais de um jeito irritante (como se fossem tolas demais); mas essa foi uma coisa pessoal que eu percebi segurando as páginas amarelas. Uma observação, só isso.
Christine diz isso das minhas observações, que “sou vago e tenho tendência a reduzir o caráter das pessoas”, o que seria uma fala típica de Elizabeth -a personagem principal dessas páginas amareladas e podres- dotada de gênio inspirado e linda. É que eu acho que ela é linda, essa Lizzy, que se a visse numa tarde no pub, olharia mais para ela do que para as outras irmãs.
Hoje eu sinto falta de como Christine era, de como ela “falava Elizabeth” ao conversar comigo em nossa primeira casa. De me criticar. Ela tá ali no nosso quarto com o notebook na barriga vendo reality shows na TV. Lizzy buscava livros e inspiração para contestar tudo o que ouvia. Destoa de Jane, que é só extremamente bonita e bem educada, cega por uma possibilidade de encontrar um marido que ame e salve a sua família: o senhor Bingley.
Eu não acho que Lizzy possa ser minha Christine hoje (sabe, aquela lá no quarto com as pernas nuas e sem toneladas de roupa); talvez seja mais “Jane”, com a diferença de que não me dá boa noite quando eu a beijo no quarto. Sou um homem idiota pensando nisso, e homens podem ser idiotas em períodos diversos na história; podem passar uma obscuridade de sentimentos velados (sejam eles horrorosos ou pretensiosamente amorosos) como na época vitoriana, ou ser uma muralha aparente como Senhor Darcy - o anti-herói do livro - que até onde li naquela noite, tinha uma certa atração por Lizzy. Homens com muralhas, escudos, como a nobreza despreocupada e desinteressada pelos problemas do mundo. Homens e seus mundinhos. Homens reis caçando raposas até hoje.

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