Os
espelhos.
Não
há imagens a serem refletidas nesse lugar; creio que a necessidade estética
deva ser renunciada perante a intrigante - e indômita - realidade da dúvida.
No
entanto, creio que as imagens continuam a aparecer em elipses; insistentes, elas
aparecem em reflexos de colheres, pratos e vidros do refeitório. Olhos enormes,
amarelos, vítreos: escamas e o inferno na língua de cobra. Permanecem as mesmas
observações, mas, infelizmente, hei de me contentar com o desenrolar inevitável
das cartas.
Cartas.
Recebi
uma carta de Giles em um inverno frio, desses que remetem a situações distantes
e de amigos de infância que rodopiam e atiram bolinhas de neve. A missiva era datada
de Londres, Inglaterra! Giles estava na terra de Sir Arthur Conan Doyle!
Imagine só, aquele meu irmão tímido e arredio na infância perambulando em
Piccadilly Circus! Baker Street!
Giles
disse ter encontrado máquinas incríveis que limpam o chão e tapetes, e uma
turba realmente interessada no progresso.
Ele
mencionou “turba”: eis a escolha de linguagem do meu querido irmão... Este meu
irmão parece estar mais habilidoso na escrita; pois os detalhes da cidade
inglesa ressaltam aos olhos como se estivéssemos vendo as calhas do limpador de
chaminés de William Blake. Londres: sombria e esplendorosa, abrigando o meu
pequeno irmão...
Em
pouco tempo, Giles se tornará alguém importante e influente na Europa. Assim
espero. Espero. Continuo na esperança de vê-lo aqui...
O
tempo passa, e recebi mais uma carta. Ele, meu irmão, descrevia Paris e as
luzes ofuscantes da boemia com os seus cabarés burlescos. Detalhes luxuosos,
ornamentos, veludo, cigarros, batom; mas creio que ele só observa o mundo como
o faz um grande escritor; taciturno como Maiakovski escrevendo uma carta num
café. Giles é uma criança – não pode conhecer tantos detalhes mundanos (!); sua
imaginação é livre no Velho Mundo.
A
próxima missiva estava suja de terra, escrita em um lugar chamado Tsaritsyn; a
ao que me parece, a sua habilidade precoce na escrita garantiu um posto a ele;
um ofício para tecer e descrever comentários sobre a campanha britânica!
Meu
irmão numa guerra!!
Estremeço.
A
cada carta uma descrição: aquela visão infante de um mundo inocente em bunkers.
A cada carta um sentimento regado a tiros de canhões e baionetas. Tenho medo.
As cobras mostram escamas terríveis e belas como pinturas futuristas. Cada vez
mais.
As
cartas vinham dos mesmos lugares, mesmas imagens e cacofonia. Após um tempo,
não as recebi mais. Minha vida entre os espelhos começa.
Pergunto
sobre as cartas de Giles todos os dias à enfermeira Shelley, e ela me diz,
sorrindo, que “chegarão um dia”; mas eu reluto e não descanso: ela só me diz
para tomar todo o comprimido com água para ficar calma.
Daí
eu bebo todo o conteúdo e mostro a língua para fora. Shelley meneia com a
cabeça. E a partir desse ritual diário, uma serenidade se apossa de mim; e
penso que, talvez, as cartas realmente cheguem...
* trabalho de faculdade inspirado no livro "A menina que não sabia ler" de John Harding.
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