Ela
acendeu um cigarro e foi lá para a calçada, longe da barulheira dos amplis de
banda ruim e de gente balbuciando conversas ininteligíveis.
Lá
fora, na sarjeta, viu um peixe.
A
criatura boiava em uma torrente de água suja despejada por um homem que lavava a
calçada da padaria cheia de vômito. O peixe - um bagre desnutrido e com olhos
em formatos da letra X - descia junto
a essa cachoeira de lodo paulistana-existencial. A moça jogou o cigarro e saiu
correndo atrás do desgraçado.
A
água do lodo, a cachoeira do bagre, desembocou numa antiga boca de lobo
entreaberta com os dizeres de “1933”.
Ela, lógico, parou ali, vendo o resto dos dejetos aquáticos terminando o seu
curso. Ia desencanar, voltar pro show e falar da proeza aos seus amigos desinteressados,
mas ouviu, de longe, um cantarolar:
- Viva eu, viva! Viva!!
É,
parecia que o canto triunfante (e inspirador) emanava do esgoto do peixe que
nadava em vômito de Sucrilhos.
Ela
voltou. Olhou pro bueiro velho; cheio de plásticos detidos pela boca de arame. Acendeu
outro cigarro e sentou na beira da boca de lobo esperando novamente a cantoria.
-Viva! Viva!!
Ela
soltou uma baforada em formato de anel perfeita. Particularmente, aquilo a deixava intrigada (mas
não do jeito trivial como, por exemplo, uma pessoa comum não atingida por atos extraordinários);
não, nêgo, aquela menina já tinha visto muita merda estranha nessas vielas e
salas exóticas do Mundão.
Aos
sete anos testemunhou uma cadela parir 35 filhotes. Misto de natimortos, e
ansiosos pela vida abortada, os filhotes sugaram a vida da mãe no parto bizarro
num último impulso sombrio. A cadela virou uma massa de ossos, sangue e olhos
duros e secos.
Aos
treze, viu uma enorme carruagem se materializando em sua sala. Os homens e
mulheres portavam chapéus imponentes e chicotes de um filme do final do séc.
XIX, e desfilaram despreocupadamente como num filme mudo acompanhado por um
piano. Só para ela.
Aos
dezessete foi para a cama com um garoto só por causa de uma aposta: o cara que
dizia ter um pinto em formato da letra “O”. O cara provou. Claro, não treparam,
seria impossível...
E...
...
Bem...
Agora,
naquele momento, ela via um peixe descendo numa cachoeira escatológica e cartunesca.
Cantava tipo Merrie Melodies.
- Esse
peixe tá feliz, ué!? Nada demais!
Levantou-se
e tirou a poeira da bunda. Deu outra baforada de ódio para o mundo.
-Tchau,
senhor peixe!
-Adeus, linda garota!
Silêncio.
Três segundos.
Ela
parou. Ninguém, ninguém – ninguém mesmo – a tinha chamado de “linda” nessa vida.
E a primeira vez que ouvia isso... Era de um peixe!
(e tratava-se uma história que beirava
{quase} à alucinação Futurista).
Ela
jogou o cigarro no chão. Olhou em torno de todo aquele cenário: uma rua feia na
madrugada, as pessoas saindo da balada – outras de carro, outras indo pro ponto
tremendo de frio usando roupas enfadonhas -, um homem dormindo numa casa de
papelão, um cachorro se coçando e lambendo as bolas, uma mulher gritando
palavrões de cima de um apartamento. E a trilha sonora de tudo isso, ao fundo, sirenes
gritavam apressadas ao longe. Uma orelha cortada no canteiro de pedrinhas para
guimbas de cigarro poderia levá-la a outros mistérios.
O
mundo era estranho o bastante.
Se
ela não tivesse amor, teria a estranheza, o indecifrável; e novas correntes a
perseguir.
-Adeus
mesmo, peixonóvski!
Não
se ouvia mais nada. Apenas seus passos subindo uma rua em espiral em tons
amorfos de vermelho.
Fenomenal. Belmont, sua maturidade literária está na próxima esquina, meu caro.
ResponderExcluirHahaha, ótimo! O pinto em forma de "O" foi o melhor.
ResponderExcluir(sempre na próxima esquina...)