Quem pensaria que os moleques, aqueles merdinhas que viviam aporrinhando os mais velhos com sua inconsequência adolescente, aparentemente inofensivos naqueles dias, andando pelas ruas chutando latas e cantando hinos do Chelsea ou Arsenal, estariam- neste momento - atormentando os pensamentos de gente viva? Quem?
Até por quê... eles estavam mortos. O problema, o foda, era saber de tudo isso.
Em algum canto, em algum pequeno lugar de desamparo etílico, um homem lamentava por pequenas almas de ódio num refúgio bem particular. Ódio puro. Na verdade, eles não eram mais garotos – Keef e os outros – eram uma massa de pensamento e violência extrema que compraram essa merda toda de Skrewdriver e Tory. Inocência, sim, era o velho à minha frente virando um pint de Guinness, a julgar que aqueles pequenos merdinhas cheios de suásticas estavam em paz em algum tipo de céu buscando redenção num lugar colorido.
A imagem do banheiro. A amálgama distorcida do ódio com suas tatuagens... Marv continuou, perdido entre algo com as palavras amargas:
-John, a verdade é que eu vi essa molecada aqui, crescendo com a gente. Foi um erro meu não deduzir que, debaixo do meu nariz, eu estava consentindo com tudo isso. Eu, aqui, sentado na varanda, nesse bar, dizendo a toda hora para aqueles porrinhas “gente, peguem leve”, “ei, os garotos da East End estão espertos”. Eu, vibrando com toda essa coisa nossa de pegar nas bandeiras e entoar hinos, estava – na verdade – incitando os moleques a essa pungência da violência? Essa necessidade que nem eu sei o que era há dez, vinte, trinta anos atrás?!
-Não se culpe, Marv. Gostei da “pungência da violência”...
Silêncio. Constrangedor.
-Estou velho, John. Tenho filhos, tô no seguro-desemprego e vulnerável. Me permito a alguma porra de sentimento e introspecção de vez em quando, sabe?!
Eu sorri. Ele retribuiu.
-Eu te odeio, John. Eu pago essa. Vá embora e me deixe em paz.
-Se cuida, Marv. A noite é breve.
Larguei o pobre diabo com seus pensamentos perdidos. Londres ansiava por um pouco de gente sem rumo por entre as calçadas e, prontamente, eu atendi a desgraçada sem titubear. Se o velho Marv soubesse que Nergal usou na mulecada somente aquela “pungência da violência” que ele mesmo citou – com propriedade – para transformá-los numa massa profana de ódio cego...
Há um velho axioma mágico que diz, basicamente, que só reavivar e verbalizar um pensamento traz à tona a força da magia quando ela é proferida ou enunciada. O Marv, velho hooligan, naquele momento exaltava, fortalecia o puto do Nergal com o seu tributo à violência. Cumprimentava o merda lembrando das suas vítimas. Melhor ele não saber de nada, John. Melhor era você não saber de nada. Mortos demais nessa merda toda.
Meio tarde, John. Devia ter pensando nisso antes de todos os círculos mágicos, adagas e rituais...
Como dormir debaixo de todo esse barulho?
Dei uma apressada. Zed me esperava toda faceira no metrô. Me acendeu um cigarro e colocou na boca. Aquele sorriso me trouxe de volta de algum recôndito sujo que parecia aprisionado. Tente isso, amigo; tente fugir dos lugares inóspitos com o sorriso de uma mulher linda.
Afinal, uma coisa ou outra eu tinha que aprender entre umas voltas pelo inferno ou uma treta com esses putos e seus tridentes e cachorrões, não?!
Ela me beijou nos lábios.
-John, posso ir para o seu apartamento hoje?
Ela sorria. Nossa intimidade. Nossas piadas internas.
-Baby, eu tenho medo que você se apaixone por mim. Sou um homem muito requisitado.
Ela sorria, sarcástica.
-John Constantine, você é um pobre desgraçado que vaga por essa cidade trombando desgraçados que querem apagar você ou a sua família: arrume um trabalho, porra!
O dia estava cheio de sentimentos e sutilezas.
Fomos para o meu apartamento. Mofo e sujeira; vinte e cinco dias trancado desde a última ida aos pântanos: convidativo até demais.
-Não me importo com nada disso. Você é autêntico.
Ela que dizia isso vendo a sujeira da minha vida. Eu não falava nada. Só segurava a cintura dela. Com força.
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