Esse demônio baixa em mim, é meio estranho, Lúcia.
É, veio o inverno e eu achei que a gente ia se ver pela praça cantarolando uma música besta daquelas boas que você lê no lábio da pessoa na hora, mas acho que não te deu vontade de cantar por aqui no bairro, visto que eu não te vi no meu ônibus sempre cheio pelas manhãs.Tava frio esses dias e você não estava lá para segurar a minha mochila.
Todo dia brigo com o relógio e penso que a vida vai ser bem sacana comigo e te colocar na minha frente quando eu subir para mijar e te encontrar na saída do banheiro do boteco, daí não tem ninguém: seguro o meu pau mole e a cerveja me espera na mesa; mas é só sentar e começo a pensar nas noites que a gente pedia um lanche de calabresa no meio do caminho e beliscava uma pizza fria ao chegar em casa...
Lúcia, ao encontro de tudo estou aqui.Pego esse guardanapo da caixinha metálica prateada e te escrevo essas palavras para depois amassar e jogar por aí em Gotham: imagino essa carta no chão e que alguém estranho leia isso para que saiba do meu desejo.Imagino o que o estranho pensa, se você pensa e se somos assim tão imbatíveis na minha mente como personagens de Sin City.Se todos os ônibus, com todas as pessoas e seus mp3´s tocando rádio olharão para mim pensando em ti, em cada rosto que fito buscando a sua cara que não tenho certeza.Eu não me lembro muito do seu rosto às vezes, persigo cabelos iguais aos seus pela cidade para me dar conta que um pequeno detalhe é enorme.
Outro dia persegui uma garota meio familiar do Paraíso até a Consolação.Ela andava rápido.Quando vi, decidi ir para casa dali mesmo bebendo X-Tapa porque ali a cerveja era cara.
Voltando para casa a pé.Os homens se sentem miseráveis mesmo, tontos e decididos num sonho bobo descendo pelas avenidas e passarelas.Eu sou ridículo e aceito que tudo isso é patético.Cartas, cartas de amor não são ridículas, Portuga: são ridículas pra caralho; destinadas a viver numa caixa escondida na gaveta mais alta de um armário velho para te salvar numa noite que você quiser se sentir mais miserável.
Desde quando me tornei uma caricatura, Lúcia?Eu era mesmo engraçado?Lembro que uma vez nós rimos de morrer de uma piada boba minha e você me disse que eu não era triste.Eu lembrei do Cartola cantando “Quem me vê sorrindo...” na hora.Eu sou engraçado, acho que pelo menos eu era.Não, não sou: a gente riu é junto da mesma piada tosca em vários improvisos pelas madrugadas.Era ótima essa nossa piada.
Agora é hora do guardanapo encontrar um estranho.
Uma vez peguei um daqueles balões de gás que voam, ganhei numa festa de crianças em que comi beijinho exageradamente com meus amigos casados; você tinha ido ver a sua mãe essa noite.Amarrei uma carta no balão dizendo que te amava e que era muito feliz contigo.Ele voou pelos céus em meio a trovoadas de uma garoa tímida.
Será que alguém leu?
Porque se isso aconteceu, eu me sinto menos sozinho no mundo, sou um egoísta ridículo de cartas no ônibus desejando a minha doença para o universo nas horas que coloco o fone na cabeça e penso em você, Lúcia.
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