domingo, 30 de setembro de 2007

paris,marcelle e chacal.

-Bom dia!-disse o porteiro da espelunca.Adeus lugar medíocre.
"Você está indo bem, ninguém sabe o que aconteceu na noite passada e não há vestígios do trabalho, muito bem feito por sinal.Ontem, nem a manchinha vermelha na sua Ralph Lauren na gola atrapalhou, deve ter parecido batom pro porteiro."
Vivia dizendo isso pra mim mesmo saindo de um motel e dirigindo para um outro, a diferença é que esse era mais caro: com água quente, Sexyhot e toalhas limpas.Estacionamento.Não, não vi nenhum New beetle vermelho.Peraí.Portão abrindo.New Beetle?Sim.Vermelho ?Deve ser: quem mais tem esse carro que antes era sinônimo de pobre e agora é cool por que é de rico?
E ela tem dinheiro.Dona de uma agência de turismo, família gringa.
Vendo aquele carro descendo a rampa me lembrei da nossa primeira tarde.Vendo aquele carro descendo me perguntava porque as sensações se repetem, como se você rezasse para ter o zap na mão e ouvir alguém pedir truco como daquela vez, como em diversas vezes vi em mesas de jogo onde se puxam facas .
Nessa vida é mais difícil tirar um zap que na mesa.O carro descendo.Aquela tarde.
-Porque França?-perguntou curiosa e parecia até bonita sob a penumbra do quarto 26, deitada nua na cama e natural.
-Acho bonito.-disse passando a mão nas suas coxas lindas.Precisava ser mais profundo?
Ela fumou o baseado.As coxas me intrigavam.
Olhei para ela.Eu não gostava de fazer perguntas, dividir.Saiu sem mais nem menos.
-Você já viu o Dia Do Chacal?
-Já, eu acho o Bruce Willis um tesão .-disse com um ar de embriagada ,divertida.
-Não, essa versão é uma bosta comparada a uma das antigas dos anos 70.Quero ir para a França desde que vi esse filme.
Ela me deu um beijo na boca aquela tarde, segurando o meu queixo logo depois que disse isso.De supetão.Caloroso.
Eu me assustei.
-Promete que quando estiver lá vai na passar na Place du Tertre?Por mim?-sorria passando a mão no meu queixo.
-Para quê?Que tem nesse lugar?
-Pede para fazerem um retrato de você!Já deve ter visto em filmes um francesinho pintando alguém numa praça, então, é nesse lugar!!
Fiquei em silêncio.Coxas bonitas, as melhores.Sorriso: uns dentes branquinhos.
Um segundo.Quarto 26.
-Aposto que deve ser o lugar mais idiota para se estar: lugar de turista, comum, que os franceses-função ficam esperando gringos idiotas para assaltar.-olhei para o rosto dela, parecia bonita de lado .
Ela continuou sorrindo.Um amargo leve escorreu pelo cantinho dos lábios, brilhava.Deu mais um pega no baseado.Continuou sorrindo, triste.
Silêncio.Olhou bem nos meus olhos.Doía o sorriso.
-Sabe, meu pai morreu quando eu tinha 7 anos.Ele era admirador de um pintor chamado Pablo Picasso, nome tão famoso que até mesmo o ser humano um pouco menos ignorante que você já deve ter ouvido falar, nem que fosse numa citação de filme qualquer na Sessão da Tarde...
Pausa .Um segundo.Ela tem olhos verdes, não tinha reparado.Continuou.
-A lembrança mais linda da minha vida é dele deitado na rede tirando a siesta: eu adorava olhar para ele dormindo, ele tinha o cabelo bem branquinho que parecia algodão de tão macio que era! E eu passava a mão na cabeça dele quando dormia sempre todos os dias com um livro de arte do Picasso na barriga.Ele morreu nessa rede uma tarde, quietinho e com o livro, só que dessa vez não estava na barriga, era como ele estivesse dormindo abraçado com o livro sabe?Como se aquilo fosse...
Fez o gesto, cruzando os braços por entre os seios que eram lindos e eu não havia reparado.Olhou para cima balançando a cabeça, como se estivese reclamando para algum deus nessa terra esquecida que a escutaria de um quarto de motel.Ela tem pintinhas pelo corpo.Pintinhas nos seios.Sardas.
-E eu cresci com esse livro paralá e pracá, eu tenho esse livro até hoje e aprendi francês só para ler os comentários sobre as pinturas maravilhosas dele.Aos doze anos descobri que meu nome, Marcelle Eva, era de uma mulher que Picasso amou muito e morreu muito nova, o nome dela era Marcelle Humbert e ele a chamava de Eva!Cada mulher que ele amava influenciava na sua pintura, ele escrevia que a amava nas pinturas.E o meu pai me batizou por amor a esse homem e a mulher que o inspirava.Ele era espanhol como nós e quando chegou a França, esse lugar que você quer tanto conhecer, ele era muito pobre e vivia perambulando por Paris e vivia nesse lugar, Place du Tertre, que você diz ser um lugar idiota, vazio e sem sentido ...Mas será que você consegue ter uma idéia, ainda que primitiva de sentimento baixo desse cafajeste que você é, do quanto esse lugar é importante para mim ?
Olhos lindos, úmidos.Brilhantes .
-E quando eu te digo que quero que você passe nesse lugar por mim, é porque é uma coisa que foi importante para mim e quero compartilhar contigo; é porque penso no meu pai e penso em Picasso que amava Eva.Estar lá, seu merda, é estar perto do meu pai e das lembranças que inspiravam o sono dele naquela rede, adormecia com aquelas imagens e eu sinto isso lá.Sinto a minha mão enorme acariciando o céu de Paris, onde estavam os sonhos dele.E eu estava lá: pensando nele! Você já fez isso por alguém??Já se inspirou por algo que não fosse matar e trepar??Já deu nome de amor a alguma mulher ou uma filha???
Ela me olhava com raiva e pela primeira vez na vida pensei em algo diferente.Algo que eu pudesse tocar.Podia ser ela.Mas o que eu pensava naqueles milésimos de segundos, estranhamente não foram as palavras que saíram pela minha boca.Eu balancei a cabeça negativamente e disse.Disse baixo.Instintivo como pegar na Sigma.
-Eu sou matador mesmo, já matei um monte de gente e você é tão boa e inteligente: fala francês e o caralho... Mas me contratou pra apagar um safado da face da terra com crueldade e maldade no coração.Quem precisa de quem?Cadê a sua nobreza e sentimentos,hein!?
O rosto dela murchou.
-E a próxima vez que você falar alto que eu mato, eu te encho a cara de porrada e quebro todos os dentes da sua boca, sua puta.
Ela se levantou chorando e colocou o seu vestido preto com pressa, toda descordenada e tropeçando ao colocar o salto alto.A cachoeira de lágrimas despencava por entre os seus olhos pintados e era como se estivesse com uma máscara que vi num filme francês quando pequeno.Meu pai me levava para ver filmes franceses nos cinemas do centro velho, e eu não queria que ela soubesse isso naquela máscara.Dividir.Ela estava...
Passou a mão aberta para enxugar as lágrimas e manchou mais ainda o rosto.Palavras rápidas.
-Só agora reparei o porque do seu apelido idiota de Chacal...Patético!Quando o Nogueira me disse , achei que era algo satânico, sei lá.Já está na conta a primeira, seu merda.Semana que vem quero pronto.Mesmo lugar e hora.
Bateu a porta.
Eu olhei para a bunda dela se afastando até a porta naquele vestido.Esse negócio de olhar bundas tem muito a ver com mulheres indo embora da sua vida e até os caras de obra que mexem com elas dizendo gracinhas inúteis sabem que elas estão indo pra algum lugar longe de suas vidinhas ridículas com cantadas esdrúxulas.O pior é que ela não estava na rua e eu não era pião de obra.Eu só a olhava, aquela bunda.Indo embora, como sempre foi.Ela se afastou e eu olhei para aquela bunda indo em câmera lenta, sem dizer gracinhas na minha vida uma vez sequer, só vendo a distância entre nós.Aposto que as mulheres nunca pensaram que alguns olham desse jeito.
E lá estava o New Beetle vermelho de sangue descendo a rampa de novo como naquela tarde em que me beijou de verdade.Se aproximando.Ela com um sorrisão de canto a canto da boca.Estranho.Recebeu e-mail e deve ter se informado .Tava informada, com certeza.Queria trepar.Eu também.
Mancha na gola não me preocupava mais.Eu ia embora.
-Tá elegante, hein?-disse colocando a cabeça pra fora da janela do carro enquanto se aproximava da vaga próxima ao meu Opala Deluxe preto, 4.1 1977.
-É a minha despedida.- eu disse de um jeito seco e quase cruel.
Subimos as escadas sem falar nada.Nem olhamos um pro outro.Eu coloquei a chave enorme com uma placa com número 26 e rodei na fechadura.Empurrei a porta e a deixei passar por mim e eu olhei para o seu corpo, suas coxas e sua bunda apertada num vestido preto se afastando de mim e eu não queria isso.Bati a porta com força e pulei em cima dela beijando e mordendo a sua nuca até cair em cima dela na cama.Trepamos como se o mundo fosse pequeno.
Cigarro.
-Ele sofreu?
Nem olhei pra ela, não gosto de olhar quando fazem uma pergunta dessas, me basta o som das palavras.
-Sim, pra caralho.Quer ouvir?
-Claro que quero.-disse bem baixo e triste.
Eu parei para pensar.
Acabei fazendo essa pergunta idiota.Algo estava estranho naquele quarto: as palavras saíam diferente do que eu planejava, eram geralmente perguntas e eu não gosto de perguntas.Não gosto de dividir e não queria respostas; não quis daquela vez olhando para aquele pobre coitado de cabeça grisalha amordaçado num poste que eu espanquei num terreno em Cotia, quebrando os seus ossos com meus jabs e hooks como na velha Academia do Geninho na Boa Vista.Eu não dividi nada com ele: nem mesmo olhava para seus olhos úmidos, não queria saber se tinha filhos, se era bom pai ou o caralho; a minha clemência não tinha nada a ver com julgamentos morais por que eu simplesmente não questionava e ele foi o primeiro que eu matei por dinheiro.Eu o socava como os sacos na academia e ouvia Geninho gritando engraçado "Uqui,Uqui", gritando que eu era fraco e levantava a guarda.Eu não fazia muitas perguntas filosóficas, não queria dividir.Mas acabei dividindo com ela essa.
-Quem era o cara?Desisto.Ninguém conseguiu nada para mim e olha que tenho contatos de respeito.Eu sei quem ele é, mas nenhuma ligação com você.
O rosto era uma máscara.Me olhava petrificada.
-Se não quer falar foda-se, mas me diz o porque.-saiu sem mais nem menos,acho que parecia uma pergunta.
Ela deu um sorriso amargo e forçado.Jogou fumaça na minha cara .
-Vai se fuder, seu filho da puta.-disse devagar e frio como se enfiasse uma faca de vendetta.
Levantou e saiu em direção ao banheiro.Bateu a porta com raiva.Levava a bolsa.
A gente nem pensa, é reflexo: peguei minha Smith Sigma 9mm e ainda tive tempo de ver que tinha uma mancha de cola nela.Passei a unha e tirei a marca.Me lembrei até da història do uruguaio que me deu ela de presente.Isso me irrita.Deu tempo.Saiu.
Mexia na bolsa furiosamente.
-Fica calminha, sua vadia.Eu quero ir embora e você também.O trabalho já está feito, não vem me sacanear não, viu?
Ela tinha a mão na bolsa.Dedo.Trava solta.
-Solta essa porra!
Seria fácil matá-la.Eu miro na cabeça e chego a pensar que é desnecessário, talvez no ombro.Um puta barulhão ducaralho iria fazer ( sem o silenciador).França tava perto.
Largou a bolsa.Um monte de tranqueira se espalhou pelo chão: batom, pente, doce, colares e carteiras.
Ficou com os braços tremendo e chorando em desespero olhando para mim.Fechou os olhos .Baixou a cabeça.Um choro triste, bem grave como se fosse um garoto chorando por uma coisa tola numa padaria, mas não; ela era um mulher linda de cabelo loiro todo encaracolado e com o corpo mais lindo que eu já vi desde a adolescência, eu sonhava com aquela imagem desde os recortes de mulheres que eu folheava escondido do meu pai em revistas amareladas .E eu apontava uma arma para a cabeça dela enquanto pensava tudo isso que eu não sabia o que significava.
Travei a Sigma e a deixei deslizar pelo indicador.Caiu na cama.
Ela chorava.Apertava os braços pelo corpo.Como o pai que morreu na rede sonhando com obras de arte de Picasso.Pintas pelo corpo.Olhos verdes.Coxas grossas.Num abraço imaginário em homenagem a todas as coisas que foram arte na sua vida.
Quente.Muito quente.E eu não havia sentido isso quando trepávamos.
Nós dois, nus .Eu segurei os dois braços dela que tremiam fechando-se sobre os seios com frio de choro e abri com força.Coloquei-os em volta dos meus ombros.Coloquei a minha testa na dela. Soltei os meus braços que não a abraçavam e caiam mortos esperando algo acontecer, nem que fosse ela tirar uma faca escondida dos seus cabelos encaracolados e enfiar na minha nuca.Eu esperei que isso acontecesse.Seria perfeito.Esqueci arma, onde estavam suas mãos ou se haviam barulhos suspeitos.Esqueci um monte de coisas.
Foi a pergunta mais complexa que fiz para mim mesmo.
O corpo dela me acolheu.Eu não sabia como abraçar.
E eu olhava em volta e via homens pintando um retrato nosso com traços estranhos aquelas duas figuras peladas no meio da Place du Tertre.Me faziam forte, musculoso, com braços enormes e desproporcionais, a cabeça era pequena como num quadro que vi quando pequeno de uns homens negros carregando café.Ela, Marcelle Eva, era magra toda misturada com quadrados, olhos e cabelos: era como se estivesse num mural da aula de educação artística do primário com guache e dedos, um desenho de criança.E era linda, a pintura.Eu a via.Sentia.
Ela me abraçava.Não tremia mais.
-Vou pedir um retrato sim.
Ela me beijou na boca.Não dissemos mais nada.Não precisava.
O que era certo?Eu quebrar costelas na pancada, dar tiros em têmporas e tirar vidas que são ou não, bons homens?O que era errado?Alguém me ordenar, me pagar e querer ser uma boa pessoa nesse mundo?Não éramos boas pessoas, nem nunca seríamos.
Tampouco sabia se mataria mais por dinheiro ou não, na França ou na puta que pariu.
Estávamos ali, no quarto 26 e nada mais importava.
Se eu era um assassino cafajeste e sem coração que só sabe trepar e querer dinheiro ou ela uma puta rica, ressentida e amarga com seus sentimentos em briga como num ringue, não fazia mais diferença.Éramos duas almas que fizeram as piores e as melhores coisas para estarem ali naquele momento.
Chovia lá fora uma garoinha.Céu cinza de Gotham.
Com armas apontadas: o que sei fazer melhor.
Com choro amargo, medo e confusão: essa era a Marcelle.
Antes de ir eu fiz a coisa que me daria mais saudade do Brasil: fui a feira e pedi uma garapa e um pastel de queijo.Aquilo foi divino.
-O chorinho, senhor.-me disse uma garota sorridente com um símbolo do Corinthians bordado no avental despejando mais garapa com abacaxi no meu copo de plástico branco.
Bebi .Pensei em Marcelle.
Três horas depois estava vendo o mundo pequeno pela janela do avião.Gosto de garapa na boca...
Nos abraçamos em pé e deitamos na cama naquela tarde .Eu beijava a sua bochecha.Agarrados.Colher.Dormimos.Ela não estava quando acordei.
O Brasil olhando para a minha bunda, se afastando ...
Eu, com um mini-dicionário francês-português aprendendo a pedir "um desenho" e um "por favor" .
Adormecendo com o livrinho na barriga.Uma mão enorme descendo na Place du Tertre.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

tem vodka na casa de jesus?

Velhos irlandeses gritando comigo pelo mp3 na Doutor Arnaldo, em frente ao Araçá às onze da noite:
"They wanna have me here

Have me and hold me near
Hold me down fasten and tie
But the cars are all flashing me
Bright lights are passing me
I feel life passing me by"

E eu ali, gritando a letra e nem me dando conta: como aquele garoto do "About a boy" quando ganha um discman, sozinho no ponto a caminho de casa...
Sentado na barra dos bancos do ponto do busão e vendo aquelas luzes dos carros cegando os seus olhos há muito tempo, uma sensação velha e a expressão entediada esperando algo que você sabe que vem mas não sabe quando, em forma de placas de ônibus que estão distantes e aos poucos vão formando um nome que você nem sabe onde é.Mas naquele momento eu cheguei a sorrir e cantarolar, pois era perfeito gritar a letra enquanto os carros passavam apressados: um caso de sincronia incomum entre velhos punks irlandeses; uma música perfeita na hora certa quase como naquelas vezes que você goza junto com a garota que você ama, aquele aperto forte e mãos entrelaçadas como se fossemos petrificar ali para sempre numa escultura de cobras com as presas sangrando umas nas outras, com aquela sensação indescritível dizendo aquelas palavras...
Um carro passou a milhão com o som no talo, aquele "Nóis trupica mas não cai":
-Aê ,xarope !Vai demorar hein?!
FUU-FUUUUMM-buzina.
Uma risada de hiena geral dentro do carro, naquela velocidade não deu tempo de pensar e nem de ver um cara do meu lado gritando:
-Morram na esquina que o Cemitério já tá aqui ó, seus merdas!
Um sujeito saído diretamente daquele universo paralelo das pornochanchadas dos anos 70 e incrivelmente parecido com o Paulo César Pereio: vestia um terno todo fudido e uns óculos escuros emendados com esparadrapo.Gritava com uma puta voz de manguaça essa frase imortal.
-Bando de babaca ducaralho,né patrício?
-É, podecrê.Eu no meu íntimo faço um esforço psíquico para que eles vão para o céu dos peões.
-Peões?Esse bando de chupa-teta de mamãe?Eles se dizem cowboys, patrício!Cowboys!-deu um puta grito balançando a cabeça negativamente com raiva.
"Caralho, é ele mesmo?!Será??"
Puta doença de retardado que eu tenho: dificuldade de reconhecer rostos e coisas óbvias.Coisa de TOC mesmo.Deixa a gente louco.
-Eles lá conhecem Alvarenga e Ranchinho?Tião Carreiro e Pardinho?Tonico e Tinoco?Cornélio Pires?
Nem eu conhecia essa porra de Cornélio Pires; só depois pesquisei e descobri que simplesmente foi o criador da música caipira.Respeito.
-Acho que não.Você viu o adesivo no carro?
-Eu sou praticamente cego, poorraa!Não vê não?
Eu me senti idiota .
-Vai um whisky aí?!
Eu ia responder sobre o adesivo, mas ele sacou do seu paletó uma daquelas garrafinhas de metal prateadas de bêbado profissional e eu fiquei embasbacado e hipnotizado: é um dos brinquedos que sempre quis ter nessa vida (esse e aquele maldito robô Ar-tur que tinha o meu nome e eu nunca tive...), e a dele era muito foda: brilhava muito como um Graal dos pinguços contra as luzes da noite de Gotham, só que era de prata.
-Tem copo aí ?
-Não, mas tenho uma garrafinha de água mineral.Peraí.-comecei a fuçar a mochila.
-Deixa eu descansar minha pobre carcaça etílica.
Sentou do meu lado .Uma figuraça difícíl: empurrava com o indicador direito os óculos escuros remendados que pendiam quando se inclinava para falar numa voz grave para caralho e fazia aquela cara de dor característica que a gente vê nos que bebem honestamente pela noite; o cara era gente boa.Gostei dele .
-Puta mochila fudida, patrício!Achou no lixo essa poorrraa???
Eu rachei o bico .
-Eu tinha uma que usei por dez anos, ela se chamava "Trapz" porque parecia um trapo gigante, hehe.
Ele não deu uma risada: apertou o óculos e fez uma cara feia.
Apontou para o meu Graal e disse:
-Sabe o que é isso?(Nem esperou minha resposta)Johnnie Walker Gold label.Sabe quantos anos tem essa porra?
-18!!-se caísse no vestibular...
Fez um gesto apontando os indicadores para mim uma três vezes, como que dizendo:"Seu viadinho, não era pra responder!".Depois levantou a garrafinha e apontou com o indicador direito dizendo baixinho:
-Já tomou?
-Não, caralho!!
-Nem eu!E olha que eu já tomei até aguinha de lixo numa aposta, sabe aquelas que ficam acumuladas no saco preto do danado?Peraí: toma um pouco e seja abençoado, meu filho.
Rachei o bico tremendo enquanto ele despejava uma bela quantidade na minha garrafa toda amassada.
-Sabe onde eu tomei e roubei essa poorraa?
Dei de ombros como nas caricaturas .
Se inclinou e disse no meu ouvido:
-Na festa de Jesus.Uma casa.
Eu balancei a cabeça afirmativamente como se aquilo fizesse o maior sentido(até cocei o queixo e olhei para o céu escuro), mas na verdade o que eu queria dizer era que ele tava mais bêbado que um gambá e aquilo não fazia o menor sentido para mim, como aquela letra da música "Vermelho","vermelhou no curral "da Fafá de Belém: uma vez um cara me disse que era sobre o comunismo e eu rachei o bico sarcasticamente como a Bruxa do Mar do Popeye.
-Peraí, você disse sobre céu dos peões, né?É católico, cristão?Essas diversidades?
Hehehe, diversidades era foda...
-Então (continuou), tem uma entrevista na entrada e você pode dizer o que quiser para entrar, só que tem duas perguntas que deve responder certo.
Eu:-Hum...
-Acredita em Nosso Senhor Jesus Cristo como Salvador?
-Você tá perguntando para mim?-Disse eu confuso.
Apertou o óculos e continuou:
-È claro que você vai dizer sim, né poorraa!!
Essa me ofendeu, me senti idiota ...
-Qual a senha?-emendou .
Eu:-Hum...(caralho de história surreal, essas figuras me param pela cidade-pensava...)
-Jesus fartura!!!
-Caralho!!!Tem uma placa dessa perto de casa!-eu apontei para ele impressionado.
-Uiui uiui-Começo a cantarolar a música do Arquivo-x.Comédia.
Deu um tapinha nas minhas costas e começou a balançar a cabeça como se aquilo fizesse sentido.
-Bebe essa porra.-disse calmo e com uma expressão de serenidade.
Bebi.Caralho, que whisky bom: descia que era uma beleza, não era nada parecido com os gorós de terceira que eu havia tomado, nem tomava muito whisky porque achava que era um troço que estava restrito aos bebuns com grana e eu era aquele cara que escolhia as vodkas nos supermercados 24 hs com a etiqueta vermelha de promoção.
-É uma festa ducaralho: tem rola e buceta para todas as finalidades e destilados a dar com pau.
-Tem vodka na casa de Jesus?
Me deu um tapinha nas costas.
-Eu vou te dar a letra, patrício.Mas eu não posso voltar lá...
E eu balancei a cabeça.Fazia sentido .
É..

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

porra e estrelas.

Quando eu ouvi esses caras pela primeira vez eles já estavam mortos.Uns 300 anos.E às vezes me pego imaginando o que eles ouviam antes disso, quando não havia nada para se ouvir a não ser o barulho de bombas, guerras e depois o Zeppelin queimando no ar graciosamente gritando no rádio pela humanidade.
E aqui tenho o som deles emulado perfeito pela acústica do sistema de som da cabine: desligo o noticiário e deixo esse som me tomar a vida.A minha vida que eu vejo passar em números de relatórios e pesquisas mantendo o curso da nave na escuridão.
-Filho, está mesmo disposto a isso?
Que pergunta a do capitão!
A gente sabe quando a merda bate no ventilador e vai sujar a parede feio, e sim, eu estou disposto a isso, caralho!Respondi.
É escuro aqui: uns tons azuis, reflexos brancos de capacetes; às vezes quando tiro a roupa para tomar banho sinto algo caindo pelo corpo todo, masturbações solitárias e tristes na poeira estelar , mas me deixem aqui com esses velhos boppers que eu aguento mais um pouco.
Outro dia o merda me fala pelo monitor:
-Que bosta de música é essa?
Eu só olhei com desprezo e desejei a pior morte da história da humanidade para ele.Mas qual seria?Pergunta difícil com tanta morte interessante pra pensar...
Quatro anos de serviço até o momento, monitores e tanques e tanques de oxigênio: viverei bastante se depender do governo, mas aqui nesse silêncio a gente se acostuma a pensar na morte, humanidade e outras coisas.
-Essa é a sua condição?Você está louco?!O que vai fazer com isso lá fora da órbita?Isso é um ultraje!
É, eu tava louco mesmo, tanto, que aceitou com a língua no rabo depois: ele sabia que eu era o único idiota com as respostas para o enigma complicado que a humanidade precisava e o único gênio nascido há muito tempo nessa era de bosta onde você só escolhe características bestas com o avanço da "correção genética".Não gosto desse termo.Eu nem queria ter nascido loiro: mamãe devia ter escolhido que eu fosse negão como o velho Thelonious.Caralho, eu queria parecer com ele e não com o galã de novela da adolescência dela!
-O que te motiva a encarar essa missão?E essas exigências?
Dizia sempre a tesuda da psicóloga Dra Marie que me fez um único favor em suas dezenas de consultas: servir de inspiração para as milhares de punhetas que bato para ela olhando para a lua lá embaixo e as nebulosas inomináveis; a minha porra grossa em jatos artísticos congelada na gravidade zero dançando em slow motion contra o monitor escuro em tons azuis, o sol a leste de moldura psicodélica ao fundo tremulando com seu laranja e o pensamento nos seus peitos e coxas lambuzadas pela minha saliva nojenta e abundante procurando o caminho com a língua até a sua buceta, Marie, ouvindo o trumpete do senhor Miles Davis e as minhas exigências, Doutora...
E eu aqui, doutora, quatro anos depois: loiro, com esse pinto duro na mão que minha mãe escolheu até o tamanho com carinho pela divina "correção", batendo punheta todos os dias pensando nos peitos da senhora, olhando pro espaço a minha frente que não me responde nada além de estática e que a humanidade espera que eu a salve jogando 37 anos da minha vida fora nessa missão suicida sem que eu faça exigências, querem que eu aceite tudo passivamente enquanto o mundo joga um jovem gênio de 22 anos num fogo de vaidades incerto pelo bem da raça humana?
Pois bem, eu consegui a minha doce heroína e todo o jazz compilado no mundo até hoje.
Amanhã mudo o curso e vou viver viajando pelas estrelas e buracos negros com o som no talo nos altos falantes externos tocando Gillespie pelas galáxias, pensando numa morte poética para o capitão e na bucetinha gostosa da dra Marie e quero que a humanidade se foda .