sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

o cronista

No dia X do mês Y, o cara andou pelas ruas com a máscara costurada, sempre ouvindo as conversas da cidade. Já que há muito tempo não corria pelas estradas — ou andava pelo Centrão — decidiu a volta para casa na pernada.

Para quem gosta de escrever (e não quer se tornar um escritor), aquilo era um grande prazer.

Uma conversa informal no celular vociferada no trem às pressas. Uma imagem aleatória no celular de um transeunte era observada pelo canto do olho. Os casais conversavam alguma coisa sobre os vizinhos nos bancos. Um molecote com tesão mostrava uma putaria no celular para o colega. 

De lado, alheio a tudo isso, estava o cara; aquele que não queria se tornar um escritor, mas que, sem dúvida, buscava um pouco de conforto na voz do outro para escrever.

Em meio à cacofonia do bairro, às pernadas de tênis furado voltando do trabalho, a coisa voltava a fluir na sua cabeça. “A coisa” era a escrita. Histórias sobre adultérios, crimes, filosofia de privada e, claro, o misterioso andar sobre as estrelas que sonhava em terminar; aquilo ali era um conto que o desafiava há anos…

“Devia começar uma guerra (gargalhada)... daí todo mundo acordava”

A voz era de um maluco que andava de carroça juntando papelão na rua. Soltava essa pérola para ele ouvir já que, literalmente, não havia mais ninguém na rua. 

Era coroado por desabafos de pessoas solitárias a vida toda. Desde pessoas mitômanas, depressivas, cleptomaníacas, viciados em cola, mendigos sem direito a rehab; a porra toda o  perseguia.

Era um protesto solitário? Era um cara invisível que viraria um post na internet com uma fonte bacana? O que era o protesto do cara que vivia na rua e sobrevivia de coletar papelão?

Nem ele arriscaria dizer naquela hora. Tantas vezes tentou dar voz, dar uma pincelada e humanizá-los… agora, naquela hora, a escrita só deixava essas figuras falarem. Pensou que era mais oportuno, simplesmente deixar a voz entrar no texto no discurso direto…

Ouvir esses caras já era o bastante na literatura. Humanizá-los?! Era uma interpretação para o leitor. “Deixa tudo para o leitor”, tá ligado? Quem pega o leitor na mão e dá um colinho tem mais é que se fuder.

Outro dia, um maluco o deteve na entrada do trem. O cara voltava do trabalho, cansado, andando com outros como ele. Uma fila enorme no boteco. Todos comiam um salgado de 1,50; alinhado a todos, comendo uma coxinha no balcão, saiu bebendo um café que não dava para ser tomado ali naquele recinto de distintos cavalheiros. Estava atrasado. Enquanto contava as moedas para carregar o bilhete, um pedinte gritou no fundo. “Pedinte”, um mendigo…

Moço! Ae, paga uma passagem pra mim?”

Seria babaquice exigir que pedissem “por favor”. “Na rua, mano, o cara já cansou de pedir isso.” Era o que ele pensava.
Recusou polidamente.
O rosto do maluco não correspondeu; tampouco a voz, que não saiu. Era uma expressão eternizada em um mármore taciturno.

Simplesmente não tinha dinheiro. O foda dessa modernidade é um tempo maluco em que cê tem dinheiro na conta, mas não na porra da carteira…
Foi lá e carregou o bilhete com as moedas; tudo dava certinho para a passagem.
O maluco viu tudo isso, acompanhou a cena com dedicação. E o cara o olhou com legítimo ódio durante todo o processo. Se todos o haviam humilhado até agora, aquele cara tomando café à sua frente era a soma de tudo. Algum babaca pedante com diploma diria que, para o mendigo, ele era “a epítome de todas as suas humilhações”. 

Subiu as escadas, olhando o rosto do pedinte timidamente. Tinha que pegar o trem na outra pista. Quando olhou para baixo, o homem o olhava de um ângulo entre as escadas. Subiu mais um lance de escadas e a mesma coisa: o maluco ali, olhando de baixo, estava jurando-o de morte. Que foda…

Se ódio matasse, estaria durinho com formigas nos olhos agora.

Sem surpresas, olhou do outro lado da pista oposta do trem e constatou: o maluco o olhava, do lado de fora das catracas, fulminando a sua existência com todo o ódio acumulado da rua.

Tomava o seu café, voltava de um emprego para outro. Um copo plástico manchado de café. Daria aula do outro lado da cidade. Amanhã começaria tudo de novo.
Abriu a porta: cheio de gente, todo mundo apertado. Atrasado. No trem, não tem para onde correr. Tá todo mundo fudido, sem exceção, de máscara costurada, não tem essa de home office… A gente encara isso bem rápido e joga uns dados mentalmente.

Naquele momento, pensava nas pessoas dos seus contos... esses mendigos doidos, as mulheres que gritavam no centro com problemas mentais, os trombadinhas, os assaltantes, os moradores da ponte…

Todos o olhavam do outro lado da pista do trem. Todos estavam ali.

Todos o juravam de morte por alguma coisa.

Todos não queriam porra nenhuma dessa sociedade, da humanidade com viés intelectual.

Todos eles, sem exceção, só queriam mirar o olho com raiva e tirar a paz do cara. Esse aí que observava tudo por trás dessa fina cortina de teatro. E escrevia essas porras.

E quando as cortinas caíssem, quando todos voltassem para as ruas, estariam ali pensando em formas de vingança contra todos que o colocaram ali. Mas o favorito seria o cara que escreve. Ele estaria no topo da lista.

Para sempre, em todos os sonhos, todas as noites, o devaneio o colocaria como uma vítima de cada uma dessas pessoas que transformou em história. Mortes horríveis eram encenadas nos sonhos; o medo espreitaria cada minuto daquela existência por entre as ruas em busca de material para escrita. 

Era uma troca, entende? Enquanto ele escrevesse sobre isso, haveria essa equivalência mágica.

Tremendo sobre o trem e tomando a última gota do café frio, o cara que não queria se tornar um escritor aceitou o seu destino. 

O trem parava para mais uma baldeação. Longe, muito longe…  há milhares de quilômetros do seu destino, jogou o copo de café numa lixeira e continuou a andar. 

E ouvia as pessoas.