Tem um sonho que me acompanha desde que era pequeno.
Nele, toda a vez que subia para buscar pão na Natingui explodia uma bomba nuclear lá na Vila.
É preciso registrar que eu odiava buscar pão: não há nada mais entediante para um garoto estar brincando com os seus Comandos em Ação ou jogando Atari e ouvir a mãe gritando “Vai buscar pão!” umas mil vezes.Pra não falar que era uma fase normal de alienação-infantil perante esses problemas, devo dizer que esse hábito me acompanha até hoje: não comemos mais pão francês, só aquele Panco (antigo Seven Boyz) com mortadela e queijo naquela chapa de pobre que você enfia na boca do fogo diretamente para esquentar.E queima tudo...
Desisti de buscar pão.
E lá estava o sonho: eu, criança, indo com o saco do tamanho da Lua naquela padaria maldita com as suas abelhas-mutantes-do-filme-Sci-Fi-dominical-do-Sílvio-Santos rodeando todos os sonhos açucarados, línguas-de-sogra e fazendo os pobres moleques preguiçosos (como eu) ficarem com o cu na mão de serem picados.
Peço cinco pãezinhos e corro batendo com a mão, afastando as abelhas que insistem em me picar, essas abelhas que insistem em morrer.
É, elas morrem: deixam lá o seu ferrão enfiado na nossa pele e vão voando para morrer num lugar calmo cheio de flores e pólen, as asas ficam mais pesadas...
Dormem no cemitério das abelhas como Baleia sonhando com os preás.
Deve ser triste ser abelha.Mesmo não gostando delas, o eu-criança do sonho achava triste esse destino.
Jogo as moedas no vidro e espero a mulher contar.Agradeço como tonto desde pequeno esses seres que vivem atrás de balcões; mais tarde seria eu que estaria lá ouvindo desaforo e esperando os meus namoros fugirem na aurora de uma rotina cheia, dura e besta.Olhando o dinheiro nas minhas mãos e escrevendo sobre a vida dos outros que se encenava na minha frente.Fechando o caixa e contando tudo de novo.
Desço as escadas lindas da padaria no sonho: e só agora vi o prazer que sentia na época em estar descendo, pulando os degraus brancos com os meus chinelos velhos, cabelo espetado e camisa do Bloco do Boi.No final, não era tão ruim estar lá, ia pensando em como seria a próxima fase do Megamania no Atari.
É, bem ali, sorrindo, sempre olhava a Rua São Macário, aquela rua enorme/alta que ficava ao lado da padaria, onde descíamos de skate e os mais velhos no estilo skate-punk tinham o shape de Fernandinho Batman, onde brincávamos de Goonies e eu descia com a minha bicicleta azulzinha Caloi toda fudida e fechava os olhos: eu era o Watson/Sherlock do filme “Enigma da Pirâmide” a descer naquele cacareco pelos céus da minha infância.Nossa, eu fechava os olhos enquanto a bicicleta descia com tudo.Eu fechava os meus olhos quando fazia isso.Voava.
E nessa rua, lá no meu sonho, eu parava para olhar a descida e a vista que ela proporcionava.Surreal.
Lá longe, algo laranja caía na Vila e era tão forte aquele cometa caindo que logo fiquei surdo.Estourava como um rojão batendo no chão,soltava vento forte para todos os lados e ia espalhando fumaça para o alto como uma árvore alta em raízes superevoluídas; um cogumelo se erguia.Eu segurava o pão hipnotizado com o espetáculo,sem ouvir nada,vendo aquela coisa laranja jogar o vento com seu peso, a vista e o pôr-do-sol que se anunciava para os moleques recolherem as pipas e irem para casa tirar sua camisa encascorada de brincar.
E era lindo o fim do mundo lá na Vila com as pipas pelo ar.
Eu sonho com isso há tanto, tanto tempo que não sei dizer.É um sonho repetido, tranqüilo e igual em todos os detalhes.Eu sonho com isso antes de saber o que era um cogumelo atômico, a bomba atômica ou as razões para alguém inventar isso.Eu já devia ter visto filmes e imagens com a bomba, mas...
Eu devia ter uns 9 quando começou.A gente vivia mais, não era preso e vivia na rua, não via televisão dia inteiro ou ficava carregando o celular na bateria nessa idade.Sábado tinha luta livre: Gigantes do Ring!
Pensava na bomba atômica da minha infância no último dia do ano.Hoje.
Em como a espera é algo tranqüila e descompromissada, em como eu não tenho ansiedade pelo o dia e o ritual em si dessa passagem de ano.Nunca visto branco (coloco a camisa do Misfits),não pulo ondas e tenho sido aquele que é conhecido por fazer tudo ao contrário, aquele que veio do Mundo Bizarro; as pessoas dizem que te respeitam desse jeito como a Bridget Jones e que sou isso ou aquilo, mas cedo ou tarde a gente vira a piada numa mesa com gente chata e que não sabe beber, piada na cama de mulher que te amava com um cara- idiota-rindo-com-bafo-de-café-caro.Não há retrospectiva, só bombas e amigos; isso é parte integrante da nossa vida como as ilustrações das figurinhas nos álbuns que a gente tenta completar.
Esperamos as bombas no final de ano.Nos meus sonhos.Ela lá tranqüila.Os fogos hoje à noite com as únicas pessoas que me aturam todos esses anos e vice-versa.Pensarei em vocês todos, com certeza, mas não é por que é ano novo, mas por que eu sempre penso em todos que fizeram parte integrante da minha vida.Minhas figurinhas de álbum.Minha ficha de Pinball.A bomba tá lá no sonho até hoje.
O ano novo chega por aqui.
Quem sabe hoje à noite eu sonhe com a bomba e me assuste com aquele arrepio de criança que não tenho há tempos,hein?!Aquela coisa proibida de ver um filme de terror escondido da mãe ou brincar de esconde-esconde e uma garota linda te abraçar com medo de barata...
-É isso que significa a bomba no meu sonho, Holden Caulfield?Aquele arrepio?Nada apocalíptico?
Ah, as bombas atômicas da minha infância...