sexta-feira, 22 de agosto de 2008

lobo II

Morrer entre os restos de uma manhã mal dormida.
Ela balançou os seus pés tão pequenos enquanto dormia, esbarrou nos meus que são sempre frios.Eu a abracei naquela noite e passei os meus pés feios, desproporcionais, tortos e que usaram botinhas Ortopé a minha infância todinha para aquecê-la com as minhas meias furadas.
E ela dormia ali ao meu lado, e eu a abraçava de pau duro, beijava sua nuca e ela não acordava.
Às nove horas da manhã quando o meu cachorro bateu na porta com vontade de sair para fazer seu xixi matinal , ela não reclamou do barulho dele : gania , olhava para mim emburrado , como que dizendo “abre isso aí, quero mijar, meu!”.
Não, ela ficou quieta.
Sabia que estava morta.Que ia chorar em cima do seu caixão de um jeito particular de tão doloroso e que a sua mãe me abraçaria ocultando uma certa raiva inexplicável.
Morreu ali dormindo do meu lado enquanto eu esquentava os seus pés que eu beijei tanto.
Morreu.
E não há nada para se falar da morte, a não ser que Ela (a Morte) escolhe momentos curiosos para tirar a vida.
Eu não sei, mas dessa vez não tive culpa.Não teve lua cheia.
O pai de Marcelle morreu com um livro de Picasso em cima da barriga.Dormia na rede.
Dercy morreu em meio a um sorriso.
Priscila morreu jovem.
Heath Ledger sentiu um aperto no peito sufocante.Disse algo bem baixinho .Ninguém escutou.
Ela , morreu do meu lado enquanto eu esquentava os seus pezinhos...

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

sou vil, sou reles...

Sou vil, sou reles, como toda a gente
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.

É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.

Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.

Justificar-me? Sou quem todos são…
Modificar-me? Para meu igual?…
— Acaba já com isso, ó coração!

ÁLVARO DE CAMPOS