Tem um copo de veneno em cima do piano, gosto forte exalando morte ao toque de teclas brancas de marfim.Veneno ruim, cálice de vampiro.Tem um copo de veneno que vai provocar calafrios, angústia e desespero perante a minha morte iminente, estrebucho de porco torturado, caixão aberto com algodão nas narinas.
No piano em que não sei tocar uma melodia sequer- tampouco o “Bifinho” ou o “atirei o pau no gato”- enchi o cálice e despejei veneno de barata, pó ralo e partículas sufocantes elaboradas por químicos dedicados.
A minha morte e das baratas garantida, o final de um aspirante a músico massacrando as telas brancas.
Brancas.Pretas.Música de veneno afinada com a decepção e a alegria de um filho dedicado.A harmonia em afinadores velhos, papai conduzindo minhas lições e mamãe arrancando os cabelos e engolindo.
Taça transparente.Champagne barato nos Natais em que estive fora de casa, tomando Corot e despertando a minha ira contra objetos inanimados.Louça branca de casa, guardada em caixas pesadas: mamãe guardava tudo, pois achava que eu dia elas teriam utilidade.Esse dia não chegou para ela...
Para mim, eis o copo de veneno em cima do piano.
Eis a minha vida ecoando pelo som, líquido e madeiras que ergueram o piano.Tábuas fortes, Luthiers habilidosos na França martelando incessantemente esperando a morte de uma Era sufocada pelas Máquinas.O pó invadindo as narinas entre pregos, martelos e serragem poluindo o ar. Dólares, francos e rapé.
E minha vida ecoando pelos anos.Rangendo.Batendo em copos, quebrando caixas.E corvos bicando Sidra Cereser, não, Champagne!Filho, Papai te ensinou Bach e você não entendeu.
Esse copo em cima do piano.
Essa vida sem uma canção entre tantas em que compus. Um autodidata.
Esse piano intacto através dos séculos.
Esse veneno feito às baratas que descem pela goela dos homens.
Essa vida sofisticada, que acaba do mesmo jeito há tanto tempo na humanidade.