quinta-feira, 2 de julho de 2009

marina japonesa


Era conhecida como Marina Japonesa.
Ficou amiga da minha mãe através de uma vizinha nossa que era uma evangélica-prostituta-fervorosa; não sei bem ao certo como se deu essa amizade estranha ou quais foram as afinidades: o fato é que a estranha Marina Japonesa começou a freqüentar a nossa casa num dado período nebuloso da minha infância.
Creio que ela devia ter uns dez anos a mais do que eu, mas aparentava mais; e se a gente para pra pensar nisso, é justo com algumas pessoas que isso aconteça, pois a vida (para uns) é medida naquelas balanças antigas e enferrujadas de quitanda que roubam peso de tiazinha que não enxerga bem.
Envelheceu mais rápido; e “idade não é crime” como já dizia o velho safado.
Vivia numa casa enorme que destoava das nossas casas fudidas da Rua da Feira onde tudo lá era muito cinza, com seus quintais de chão rachado, muros com cacos de vidro e (vez ou outra) uma palmeira/coqueiro tremulando a enfeitar de uma forma dúbia o cenário da nossa rua.
Marina era japonesa de verdade, formada em arquitetura e o pouco que se sabe dos seus pais é que todos morreram um a um na sua casa enorme em meio aos anos que a envelheciam com aquela balança trapaceira.Seu irmão mais velho se foi mais ou menos na época em que a conhecemos: conta-se que o pobre diabo morreu dentro da enorme casa e Marina ficou tão abalada com a perda do seu único companheiro que só depois de dez dias da sua morte teve coragem de chamar ajuda, saiu carregando o corpo do irmão em decomposição nos seus braços pelo chão de sua casa.O chão começava a rachar na sua casa...
Ela gritou ajuda para nunca mais.
Ninguém nunca soube como era a sua casa por dentro.Os meninos na rua faziam apostas para ver quem ia entrar lá e gradualmente a pobre Marina que não fazia mal algum se tornou a Bruxa do nosso pobre folclore para os moleques da rua...
Ao passar dos anos, os cachorros foram os seus únicos amigos naquele palácio da decepção e ao tocar a campainha de sua casa, os latidos eram o único som daquele lugar, via-se que ela sorria desse jeito com aqueles amigos sujos com suas línguas para fora e rabinhos balançando; conviviam bem e isso era o que importava para ela.
Vizinhos não gostavam do barulho e dizem lá no Velho Mundo que se você quiser enlouquecer, o homem vai dar um jeito de te ajudar nessa tarefa: começaram a envenenar os pobres amigos da Marina, jogar ácido nos bichos na hora da feira...
Eu não sei porque penso em Marina às vezes nessas horas, aquele lugar tinha tanta figura que me faz pensar na vida.Sei que sentia raiva dos filhos da puta que faziam isso com ela e os cachorros; outros têm em sua infância modelos para se inspirar, eu, eu tinha pessoas como Marina: essas que inquietavam e me davam gosto por algo.
Ela freqüentava a minha casa e ouvia a minha mãe: basicamente a japonesa só dava uma risada aguda e muito estranha quando a minha mãe falava qualquer coisa.
Quando as duas não podiam se falar, Marina deixava uns bilhetes dizendo que tinha sido seqüestrada ou que ladrões estavam fazendo algum tipo de chantagem sombria com ela.Ao sair da escola eu achava esses bilhetes de manhã e sempre lia primeiro; o engraçado é que eu não achava aquilo coisa de gente louca, eu achava que algo mais acontecia no mundo e era apenas bom saber disso.
Saímos da Vila e pouco a pouco não se tinha mais o pastel de Feira naquela rua, nem os cachorros lindos e maltratados de Marina ou a cara dela de timidez quando me via.
Eu acho que penso nela porque quando era pequeno cheguei em casa e tinha um embrulho enorme com um cartão: era um fichário, folhas de caderno e um cartão.
Jamais esqueço a carta super bem redigida e com letras enormes.
Eu vivia enchendo o saco da minha mãe para ganhar um fichário e a louca e amável da Marina Japonesa foi a única a me dar: eu gostava do sorriso dela de timidez quando me via.
Se ela me amou de alguma forma, acho que foi correspondida agora e para sempre por mim...