terça-feira, 27 de janeiro de 2009

cartas no chão de gotham

Esse demônio baixa em mim, é meio estranho, Lúcia.
É, veio o inverno e eu achei que a gente ia se ver pela praça cantarolando uma música besta daquelas boas que você lê no lábio da pessoa na hora, mas acho que não te deu vontade de cantar por aqui no bairro, visto que eu não te vi no meu ônibus sempre cheio pelas manhãs.Tava frio esses dias e você não estava lá para segurar a minha mochila.
Todo dia brigo com o relógio e penso que a vida vai ser bem sacana comigo e te colocar na minha frente quando eu subir para mijar e te encontrar na saída do banheiro do boteco, daí não tem ninguém: seguro o meu pau mole e a cerveja me espera na mesa; mas é só sentar e começo a pensar nas noites que a gente pedia um lanche de calabresa no meio do caminho e beliscava uma pizza fria ao chegar em casa...
Lúcia, ao encontro de tudo estou aqui.Pego esse guardanapo da caixinha metálica prateada e te escrevo essas palavras para depois amassar e jogar por aí em Gotham: imagino essa carta no chão e que alguém estranho leia isso para que saiba do meu desejo.Imagino o que o estranho pensa, se você pensa e se somos assim tão imbatíveis na minha mente como personagens de Sin City.Se todos os ônibus, com todas as pessoas e seus mp3´s tocando rádio olharão para mim pensando em ti, em cada rosto que fito buscando a sua cara que não tenho certeza.Eu não me lembro muito do seu rosto às vezes, persigo cabelos iguais aos seus pela cidade para me dar conta que um pequeno detalhe é enorme.
Outro dia persegui uma garota meio familiar do Paraíso até a Consolação.Ela andava rápido.Quando vi, decidi ir para casa dali mesmo bebendo X-Tapa porque ali a cerveja era cara.
Voltando para casa a pé.Os homens se sentem miseráveis mesmo, tontos e decididos num sonho bobo descendo pelas avenidas e passarelas.Eu sou ridículo e aceito que tudo isso é patético.Cartas, cartas de amor não são ridículas, Portuga: são ridículas pra caralho; destinadas a viver numa caixa escondida na gaveta mais alta de um armário velho para te salvar numa noite que você quiser se sentir mais miserável.
Desde quando me tornei uma caricatura, Lúcia?Eu era mesmo engraçado?Lembro que uma vez nós rimos de morrer de uma piada boba minha e você me disse que eu não era triste.Eu lembrei do Cartola cantando “Quem me vê sorrindo...” na hora.Eu sou engraçado, acho que pelo menos eu era.Não, não sou: a gente riu é junto da mesma piada tosca em vários improvisos pelas madrugadas.Era ótima essa nossa piada.
Agora é hora do guardanapo encontrar um estranho.
Uma vez peguei um daqueles balões de gás que voam, ganhei numa festa de crianças em que comi beijinho exageradamente com meus amigos casados; você tinha ido ver a sua mãe essa noite.Amarrei uma carta no balão dizendo que te amava e que era muito feliz contigo.Ele voou pelos céus em meio a trovoadas de uma garoa tímida.
Será que alguém leu?
Porque se isso aconteceu, eu me sinto menos sozinho no mundo, sou um egoísta ridículo de cartas no ônibus desejando a minha doença para o universo nas horas que coloco o fone na cabeça e penso em você, Lúcia.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

minha herança é uma esquina e balas de menta

"It's so easy to laugh
It's so easy to hate
It takes strength to be gentle and kind
It's over, over, over
"
-the smiths-"i know it´s over




Parado na calçada com um cigarro na boca.
Eis ali o dono da padaria com o seu intervalo de fumante constante; deve ser bom fumar, as pessoas encaram isso como um dever e se o patrão fuma também, ele entende que a gente pode e deve fumar.Acho.
Então o dono da padaria fuma com aquela cara afetada, como se tudo fosse um martírio estampado no rosto e a vida fosse um inferno.Mas o dono da padaria é um cara casado com uma mulher linda e ela trabalha no caixa.Sempre sorri para mim quando compro Fandangos e me dá bala a mais no troco.Balas daquelas verdinhas com gosto de menta.
Ela sorri e balança o cabelo loiro.Às vezes acho que sorri mais para quem compra pão do que para seu marido, aquele que fuma com uma cara amarga de quem não ri nem de um gibi bobo faz tempo.Ela sorri, conversa sobre bobagem e diz Bom dia/tarde e noite.
Ele fica ali parado toda a tarde.
O que acontece com essas pessoas?
Elas fumam, sorriem, ficam putos do nada e voltam para seus postos depois de um tempo.
O dono da padaria me parece um homem triste.
A mulher me parece mais feliz, mas na soma é mais triste do que o seu marido; mas não fuma fazendo cara de cu.
Daí eu vou lá e compro um Fandangos de tarde.Decido pegar um Marlboro para experimentar, ver se ela irá sorrir e me dar balas.
-Obrigado, viu!Volte sempre!
Ganhei a mesma bala.Mesmo sorriso.Sou fumante.
Eu achava que ela ia me tratar mal, me odiar como o marido que fuma lá fora amaldiçoando as pessoas na calçada.
Penso.Fumo.
Começo a tossir muito pensando na mulher loira do caixa.Tenho raiva dela por ser tão falsa e me tratar como todos.Fico triste do nada, a fumaça sobe pela janela em uma baforada torta pelos prédios.
Não sei fazer anéis de fumaça.Nem para fumar eu presto.Não fico bonito com cara de cu quando estou triste fumando.Até Bogart ficava.
Passo lá outro dia e digo:
-Você fuma...?
Ela sorri:
-Não.
-Ah, tá...
Pego a bala e saio correndo.A voz dela me atordoa; fico tremendo por ouvir a voz dela se dirigindo a mim.Me dá um poder, sinto que posso beijá-la.Topo com o marido horrível fumando na esquina com desgosto.Acendo meu Marlboro e fumo sorrindo, solto uma leve fumaça em direção a ele com desprezo.
Quase um anel se desenha no ar e sobe pela tarde na Vila.
Em uma tarde infernal pela Pôr do Sol, descubro que penso demais nela e que talvez a morte desse pensamento me deixaria uma pessoa mais tranqüila e menos patética; acompanhando esses sentimentos, solto fumaça pelo ar como se fosse o que há dentro de mim.Fumo, como se quisesse tirar algo, como se a vida fosse tudo fumaça e os cientistas todos uns fumantes enrustidos.Milhares de propagandas, câncer e impotência sexual: fumo, fumo e fumo mais.Afasto a mágoa na esquina como o dono da padaria.
Como o dono da padaria...
Decidi comprar um Lucky Strike naquela tarde de grandes descobertas precoces onde não fiz questão de esconder nada e gritei como um presidiário quando gozei pensando na minha moça da padaria, a cueca lá, toda manchada ganharia mais companheiras.Manchas, manchas em todas as cuecas marcadas à caneta com o B de Belmont.
Penso que a amo.Imagino ela vendo um filme comigo.
”A morte em vida começa assim” -penso eu, um garoto da Vila tosca em meio a casas enormes em volta da velha praça.Se deus existe ele ouviu o meu lamento.
Lucky Strike.Outros gostos.
E então aquelas luzes azuis e vermelhas tomaram todo o ar e na esquina onde ficava o dono da padaria.Um nóia assaltou a padaria e deu um tiro na cabeça da minha amiga que me ajudou a fumar naquele período onde a fumaça entrou na minha vida.Dizem que ela não reagiu, o ladrão viu algo e puxou o gatilho.Bobo, que só eu , pensei que talvez ela naquela vida desgraçada onde todos olhamos para o céu, quisesse dar uma bala de menta e um sorriso para o seu assassino.
Não se viu mais o dono da padaria.
Eu, como Matt Dillon em “O selvagem da motocicleta” assumi o que os outros deixam de fardo para a gente e tomei a esquina para mim: lá em direção a Igreja onde tem uma banca decadente que não vende nem jornal, passei a minha adolescência fumando escondido e vendo mulheres,cachorros e carros passarem.Comprava um Fandangos na padaria nova onde não se via as manchas de seu sangue no vidro escrito "entrada" ou a sua doçura, moça loira.
Lá no mirante da praça, eu fumava e olhava para essa cidade com o seu céu cinza que a gente tira de dentro da gente.