“... luta... três horas da manhã... é o que aconteceu”
Cai a ligação. Mais um passo.
“Caralho”
Voltou a descer. Passos rápidos, coordenados e ritmados durante anos consideráveis na repartição; papeladas trajeto banco-escritório, beijinhos para as secretárias, sorrisos de atendentes gostosas, salgadinho Fofura, churro de um real, Street Fighter com o Blanka no Centrão “não tem pra ninguém, mano”.
Tocou de novo. Diminui o ritmo.
Descia. Os passos mais cautelosos, mas sempre cadenciados e harmônicos, que nem samba das antiga.
Botãozinho verde.
“... Márcio... cê... mãe... tua MÃE!...”
Fim.
Estalou. A cabeça foi à milhão no rasgo de consciência, no instinto aranha de sentir o perigo de longe. A cabeça gritava. Implorava.
Estalou. A cabeça foi à milhão no rasgo de consciência, no instinto aranha de sentir o perigo de longe. A cabeça gritava. Implorava.
“Que número é esse?! Porra, não tenho identificador de chamadas.”
Um pensamento idiota passou pela cabeça, uma associação no meio do caos do meio dia “Chamavam isso de olho mágico, né?”.
Milésimos de idiotices entre segundos de terror, apavôro e insegurança. Chegou ao final da escada e pediu para a Marina:
“Preciso ligar pra casa. Por favor, Marina!”
(que gostosa!)
Era o decote. Um pensamento, um flash, um instinto isento de culpa. Pura distração, uma fuga inconsciente daquela realidade momentânea que quer redenção: não culpem o menino.
“Aconteceu alguma coisa, fio?!”
“Não sei!! Me ligaram no celular e eu não entendi porra nenhuma, falaram um bagulho da minha mãe no meio e eu tô aqui: no apavôro...”
“Calma...”
Um rasgo de doçura na voz dela. Coisa materna repousada, adormecida no âmago da mulher jovem. Condescendência momentânea. Desabrochar.
“Liga sim, vai. Depois eu coloco uma observação dizendo que a ligação foi “motivo pessoal”, certo?!”
...
“Tô cagando pra isso” pensou.
Dedos rápidos. Mnemônico. Números digitados, destreza. Facilidade com números. Escola interrompida.
Dor.
Toca, toca, toca. Ninguém em casa.
“Caralho!”
“Que foi? Não tem ninguém?!”
Meneou com a cabeça. Apavorado e perdido. Desespero, raiva.
“Marina, posso ligar pra celular? É questão de vida ou morte: depois eu pago essa porra; mas eu preciso ligar agora!”
Não era um pedido, era a urgência. Legítima. Quase nobre.
E não me venham com interpretações tendenciosas, pois eu defendo o menino; chega uma hora em que a hierarquia não tem importância no mundo e as palavras são imperativas, dotadas de força entrecortante da desesperança e agonia: nada detém esse ímpeto. Nada. Hierarquias, gradualmente, perdem seus propósitos. Significado.
“Já ta ligando, né?!Ai ai, viu?! Depois cê se acerta com o Sr Osmar...”
“Sr Osmar o caralho! Nem quando meu pai era vivo eu chamava de senhor!”
Raiva. Aê, era coisa antiga.
“Lívia! Cê ta aonde? Tá no quintal? Sou eu, porra! Minha mãe ta por aí! Ãhn! Vai para lá, bate palma! O que foi? Recebi uma ligação estranha, toda chiada falando da mãe e tô apavorado! Vai lá, por favor, fia! Tira a minha agonia!”
Tempo.
Marina digitava no teclado. O decote permanecia. A beleza dela era tardia, porém compensadora. “Ela é bonita” pensou com certa pena. O fundão da repartição era o mesmo. Um monte de gente fingindo se ocupar, e-mail, Orkut minimizado e TV online para ver/rever os gols da rodada na hora do almoço com caipirinha para quem tem VR. “Márcio, essa corja não faz nada a não ser arrancar o nosso côro pra ficar rico, filho”. Pai. Distância. Caixão. Velas entre um corpo coberto por jornais de emprego de 0,50. Mãe com o filho comendo Miojo e ganhando roupas grandes dos amigos e dos vizinhos. Cesta básica. Mamãe sozinha. Trabalho, infância perdida, dores pela rua, uma arma na mão, poder da decisão, papéis, um troco pra casa, umas panelas novas. Pizza uma vez por mês. Celular. Salário mínimo. Mamãe e a incerteza do terror no apavôro de palavras entrecortadas de uma ligação, a mínima possibilidade de ligar para casa. Sem créditos: sem visibilidade, sem ação, apenas à espera da notícia que virá; a que irá devastar, sem créditos: sem esperanças para a velhinha que dava “bença” todos os dias de manhã, tristeza quando pegou o filho com um beck na caixa de sapatos. Sem nada, sem mãe, sem pai, sem respostas. Sem crédito da sociedade.
“Márcio, tua mãe tá lá no sofá, tadinha! Eu cheguei gritando e apavorando e ela tava cochilando no sofá vendo o jornal! Vai trabalhar, menino! Tá tudo bem, fio. Vai almoçar, a mãe mandou um beijo. Fica com deus.”
Barulho monotônico. Volta. Recuperação.
“Márcio, cê ficou cinco minutos nesse telefone ligando pra celular!! Lembra do que o Sr Osmar falou de ligar pra celular?? Cinco minutos!!! Cê tá pêgo, tio!! Vai lá explicar isso agora que eu não quero bucha pro meu lado não, viu? De novo, não!”
Pausa. Fôlego recobrado. Intensidade. Ela é bonita... Uma pena...
“Depois sou eu que agüento essas merdas com o Sr Osmar, Márcio!!!”
Não disse nada. Palavras ininteligíveis ressoavam, novas interpretações surgiam. Gratidão pela compreensão.
Não disse nada. Palavras ininteligíveis ressoavam, novas interpretações surgiam. Gratidão pela compreensão.
Subia rápido pela escada caracol quando o celular tocou novamente. Atendeu. Chiado. Ininteligível.
Era a confusão, o caos que trazia a voz da mudança no chiado.
Nunca soube quem era, mas soube o que era, e o que acabou sendo...
Na cacofonia das ruas, a repartição se distanciava a passos cadenciados, harmoniosos, decididos. Palavras incompreendidas entrecortando rotinas, trazendo epifanias no solzão do meio-dia onde se come cachorro-quente a um real com suco grátis.
Cacofonia distante.