Sem
mistificações.
A “bomba”?
Tá...
O
que chamo de “bomba” é um pensamento. Este se originou na minha mente cedo,
quando observei uma mariposa presa entre o vitrô da janela: tínhamos aquela
janela que deslizava para cima e para baixo e era presa através de coisas que
eu chamava de “borboletas”. Elas se pareciam com uma borboleta mesmo, e
(confesso) estremeço ao pensar nelas... Minha mãe ficou com medo de uma mariposa que
pousou no vidro da janela, e para afugentá-la decidiu subir a outra parte. Isso
aprisionou a enorme mariposa entre dois vidros espessos do seu quarto.
Ficamos
inertes. O desespero na minha alma era sufocante. Aquele pobre e enorme bicho
mal batia as asas pela falta de espaço. Minha mãe tomou a decisão que ninguém
gostaria de tomar:
-Vamos
deixá-la assim. Com o tempo ela morre. Eu não agüento olhar mais para essa
janela.
Ela
se mudou para o meu quarto. Fechou o seu com tábuas e pregos enferrujados...
Eu
tinha nove anos.
Sonhei
com a criatura aprisionada... com as suas enormes asas fazendo uma esforço patético
e descomunal; para (no máximo) tremular pelo esforço repetivo e convulsivo da
tarefa e da dor envolvida: ali, só haveria a inexpressividade do animal
asqueroso, preso numa tela viva e destinada a público nenhum para a sua morte.
Até os assassinos em massa e estupradores tinham um público - ou a palavra de
deus na hora do adeus dessa terra na hora derradeira. A mariposa e aquela força
invisível: um músculo alienígena de sua constituição dantesca era imperceptível
aos nossos olhos, à nossa era e espaço.
A
mariposa permanecia lá. Morávamos num sobrado afastado de qualquer lugar ou
bairro reconhecível; enfim, tudo era distante . Saía para brincar lá fora, e –
de longe - avistava a mariposa presa entre os vidros no primeiro andar do nosso
mausoléu afastado de tudo. Ela sofria, eu tinha certeza.
Eu
sofria. Eu era a mariposa. Eu era a maldita mariposa.
Pensei
em atirar uma pedra lá de baixo; quebraria o vidro e a maldita criatura flutuaria
até o chão de escombros e imundícies, inerte pelo esforço repetitivo das duas
enormes e escuras asas com desenhos de olhos e quimeras sombrias. Eu cuidaria
dela.
Mas
se atirasse a pedra no vidro, mamãe saberia que fui eu. Incontestável era a
certeza e a angústia de não ser culpado ou merecedor de alguma dúvida da
misericórdia humana. Não, não mesmo. Eu era a única criança naquelas
redondezas, naquele bairro cheio de escombros e cartuchos de balas entre o
concreto antigo, naquele reino que seria desbravado por mim.
A
única criança na cidade.
Desse
jeito, permanecendo assim, a mariposa sofreria mais. O calvário seria longo e
árduo. Eu também. Não consegui mais sentar em volta do rádio e ouvir as
aventuras de capa e espada, ou os casos macabros narrados nas novelas da
capital. Nada. Nem um poema lido por Carmen através da estática me tirava
daquele transe, do pensamento do terrível sofrimento excruciante da mariposa
negra-cinza com olhos e quimeras em suas asas. Uma pedra não a salvaria de lá.
Sinto muito.
Mamãe
chegou. Trazia sacolas e sacolas com alfaces escuras, nabos duros como um
fêmur, recortes de jornais antigos e outras coisas.
-Melhor
comer, não é?!
Comemos.
Sempre
era assim. Sentávamos no chão sob um tapete vermelho com um círculo dentro de
outros círculos. Eu os contava desde que tinha consciência: eram 27 círculos
dentro do círculo principal, todos em uma linha preta os delimitando. Esse
número era tão forte que - de forma monomaníaca - coloquei na cabeça que seria
a idade da minha morte: um círculo de cada ano. No meio de tudo aquilo, enfiei
uma alface com bichinho na boca e apontei com o indicador o nono círculo do tapete rubro; aquele era o
círculo atual. Eu viveria vinte e sete anos...
Mas..quantos
segundos – minutos - anos viveria aquela maldita mariposa ?!
Eu
era um pirralho, mal tinha nada no corpo, nada; mas pensava que apenas o
sofrimento do viver era um tormento deveras insuportável para aquela mariposa
aprisionada; diga-me, quantas crianças já pensaram nisso em uma vida?
...
Talvez
muitas. Talvez. Mas ora se esquecem, ora lembram-se depois, aterrorizadas e
adultas com um travesseiro molhado de suor na orelha: a consciência lá, tateando
um teto escuro - como um morcego cego na noite - as lembranças daquele tempo
imemorial, da infância terrível e adormecida. Despertando de um pesadelo entorpecido
como um gigante no momento da clausura; e os adultos lembravam-se, lá, em algum
momento ou sabá... “Lembrar” era um hábito ruim no mundo dos adultos.
No
entanto, eu permaneci; pensamento infante envolto em nove círculos pretos
feitos em um tecido preto sobre o vermelho; vinte e sete anos seriam o bastante
para acabar com tudo isso e descansar: minhas asas desistiriam de fazer
esforço, cessariam, romperiam com a pressa, e o descanso seria merecido. Justo.
“Queimem o tapete, mas (chorando) deixem a pobre mariposa em paz!!!!!!!!!!!!”
Eu
gritava.
Por
quem eu chamava?! Mamãe não me via chorando?! Eu era o único garoto da cidade,
o único menino dos escombros, na única casa no país que tinha um rádio intacto
depois dos aviões rasantes e imponentes: eu era o único homem nesse mundo do
absurdo.
Comemos
as alfaces. Mamãe foi ao banheiro: ela ficava lá por horas a fio, deitada no
chão branco de azulejos quebrados lendo os jornais antigos que embrulhavam os
vegetais. Ela me ensinou a ler, eu fazia o mesmo às vezes.
Andei
na ponta dos pés. Coloquei a orelha na porta que guardava o santuário de morte
mais odioso, o que não prezava a morte como passagem ritual e, sim, nada mais
era que um símbolo para a criatura que tem o poder de voar como os homens
queriam há anos; e esta (a portadora da dádiva incompreendida) era castigada
pela barbárie do mundo dos adultos. Eu não ouvia nada. Queria ouvir aquelas
enormes asas batendo no vidro, desenlaçando do abraço da morte na armadilha do
vidro.
Bati
na porta. Chutei. Nada. Mamãe não ouvia. Era a madrugada com a lua mais
brilhante de todas. Um enorme olho ciclópico com uma íris alva no firmamento
admirando um lugar sem vida.
Peguei
um enorme baú que tinha quase o meu tamanho e o tirei do chão com a cólera contida
do desespero e da morte; eu era o libertador da angústia, o que traria a Morte
ou a Vida como conforto. No caso da minha amiga, eu não sabia mais.
A
porta abriu. Mamãe gritou. Barulho.
A
noite projetava uma luz enorme no vidro e as gigantescas asas eram sombras
escuras e terríveis que preenchiam quarto todo. Eu gritei, e elas não se mexiam;
só ficavam ali, projetando a sombra mais fantasmagórica pela imensidão do
sobrado semi-destruído.
Eu
gritava, sangrava na alma. O horror era absurdo, aquelas enormes asas fazendo
sombra no quarto mataram algo dentro de mim. Gritei, mas ninguém ouvia naquela
cidade, naquelas redondezas. Mamãe me abraçou e olhou para a sombra enorme no
quarto e gritou comigo, o arrepio do corpo dela, os pêlos eriçando e a loucura
subseqüente que viria foi sentida no abraço dela. Mal ela conseguia testemunhar
a visão ou proteger-me... Ou salvar a si mesma do horror.
Cai.
Ela
também.
Desmaiamos.
O
sonho foi um nada. Um vale de sombras entre uma cidade sem nada. Um nada no
meio do nada. Um reino de coisas e casas destruídas pela ira do homem.
Eram
as asas da mariposa que pousavam e projetavam a sua sombra sobre nossa
existência, eram as asas que nos fazia adormecer.
Acordei
com mamãe por cima de mim. Ela estava toda babada.
A mariposa
não estava mais lá.
Nada
me ocorreu. Mas no fundo eu sabia que ela tinha se libertado com o barulho
ensurdecedor de duas criaturas enlouquecidas por uma imagem inenarrável. “Ela
se arrastara – pensei - caída por entre o quarto; a lua era branca e virginal,
suas asas ganharam a força e ela deve ter feito o seu vôo trôpego pela
madrugada”.
Mamãe
acordou. Me viu em pé, levantou-se lentamente e me abraçou. Olhei para o seu
rosto aterrorizado. Depois para os seus lábios.
Uma
enorme asa negra, com olhos de quimeras, farfalejava violentamente para fugir
de dentro da sua boca.