terça-feira, 5 de março de 2013

peixonóvski

Ela acendeu um cigarro e foi lá para a calçada, longe da barulheira dos amplis de banda ruim e de gente balbuciando conversas ininteligíveis.
Lá fora, na sarjeta, viu um peixe.
A criatura boiava em uma torrente de água suja despejada por um homem que lavava a calçada da padaria cheia de vômito. O peixe - um bagre desnutrido e com olhos em formatos da letra X - descia junto a essa cachoeira de lodo paulistana-existencial. A moça jogou o cigarro e saiu correndo atrás do desgraçado.
A água do lodo, a cachoeira do bagre, desembocou numa antiga boca de lobo entreaberta com os dizeres de “1933”. Ela, lógico, parou ali, vendo o resto dos dejetos aquáticos terminando o seu curso. Ia desencanar, voltar pro show e falar da proeza aos seus amigos desinteressados, mas ouviu, de longe, um cantarolar:
- Viva eu, viva! Viva!!
É, parecia que o canto triunfante (e inspirador) emanava do esgoto do peixe que nadava em vômito de Sucrilhos.
Ela voltou. Olhou pro bueiro velho; cheio de plásticos detidos pela boca de arame. Acendeu outro cigarro e sentou na beira da boca de lobo esperando novamente a cantoria.
-Viva! Viva!!
Ela soltou uma baforada em formato de anel perfeita.  Particularmente, aquilo a deixava intrigada (mas não do jeito trivial como, por exemplo, uma pessoa comum não atingida por atos extraordinários); não, nêgo, aquela menina já tinha visto muita merda estranha nessas vielas e salas exóticas do Mundão.
Aos sete anos testemunhou uma cadela parir 35 filhotes. Misto de natimortos, e ansiosos pela vida abortada, os filhotes sugaram a vida da mãe no parto bizarro num último impulso sombrio. A cadela virou uma massa de ossos, sangue e olhos duros e secos.
Aos treze, viu uma enorme carruagem se materializando em sua sala. Os homens e mulheres portavam chapéus imponentes e chicotes de um filme do final do séc. XIX, e desfilaram despreocupadamente como num filme mudo acompanhado por um piano. Só para ela.
Aos dezessete foi para a cama com um garoto só por causa de uma aposta: o cara que dizia ter um pinto em formato da letra “O”. O cara provou. Claro, não treparam, seria impossível...
E...
... Bem...
Agora, naquele momento, ela via um peixe descendo numa cachoeira escatológica e cartunesca. Cantava tipo Merrie Melodies.
- Esse peixe tá feliz, ué!? Nada demais!
Levantou-se e tirou a poeira da bunda. Deu outra baforada de ódio para o mundo.
-Tchau, senhor peixe!
-Adeus, linda garota!
Silêncio. Três segundos.
Ela parou. Ninguém, ninguém – ninguém mesmo – a tinha chamado de “linda” nessa vida. E a primeira vez que ouvia isso... Era de um peixe!
(e tratava-se uma história que beirava {quase} à alucinação Futurista).
Ela jogou o cigarro no chão. Olhou em torno de todo aquele cenário: uma rua feia na madrugada, as pessoas saindo da balada – outras de carro, outras indo pro ponto tremendo de frio usando roupas enfadonhas -, um homem dormindo numa casa de papelão, um cachorro se coçando e lambendo as bolas, uma mulher gritando palavrões de cima de um apartamento. E a trilha sonora de tudo isso, ao fundo, sirenes gritavam apressadas ao longe. Uma orelha cortada no canteiro de pedrinhas para guimbas de cigarro poderia levá-la a outros mistérios.
O mundo era estranho o bastante.
Se ela não tivesse amor, teria a estranheza, o indecifrável; e novas correntes a perseguir.
-Adeus mesmo, peixonóvski!
Não se ouvia mais nada. Apenas seus passos subindo uma rua em espiral em tons amorfos de vermelho.