segunda-feira, 29 de maio de 2017

a metalúrgica


enquanto mamãe não volta para casa, eu e meu irmão começamos uma nova partida de dominó. queríamos aquele jogo grande da loja da cidade, cheio de peças e personagens, mas mamãe nos disse que aquele ali era muito caro, e que dependeria de nossas notas na escola. minhas e dele. lucas fez a sua parte.

eu não. e olha que mamãe nos disse logo no início de ano... não melhorei.

tá ficando frio de noite. guardo as peças do dominó. pegamos um cobertor lá no armário. o mais quentinho. luke arranha a porta, quer entrar. eu fico com dó e olho pro lucas. ele balança a cabeça, faz que ‘não’. fala que a mamãe ficaria brava. é verdade. luke fica com as patas cheias de terra. vive cavando coisas, enterrando ossos… luke chora de frio, faz aquele barulhinho com o nariz. tão bonitinho…

mas se ele sofre, se ele chora com aquele barulhinho... como posso achar bonito? um cão chorando!!

mamãe demora cada vez mais. pegamos no sono. luke para de ganir, de implorar. melhor assim. melhor para todos nós.

mamãe demora às vezes, e eu não me assusto com isso; mas, lucas… ele fica com os olhos abertos às vezes: dorme um pouco, acorda, apaga de novo, semicerra as pálpebras, etc. os olhos dele na madrugada são como um par de bolas de gude marrons. brilham.

é de manhã. mamãe não voltou. sabemos que não voltará mais hoje. não é a primeira vez. eu levo o lucas para a escola dele. dou um beijo na testa dele, arrumo o seu bonezinho vermelho do prézinho. falo para ele respeitar a professora. vou para a minha escola, do outro lado de tudo. pego o ônibus. fico pensando na mamãe durante o caminho todo.
duas horas depois a orientadora entra na sala. fala que tenho uma ligação. eu estava na aula de artes cortando papel crepom roxo.
‘é a minha mãe, tia!?”
ela me diz sorrindo.
‘sim’.
quase a beijo no rosto de tanta felicidade!
pego no telefone com pressa. falo ‘alô’. e quando ouço a voz dela, não seguro o choro.
digo que fiquei preocupado. começo a espernear. a orientadora sai da sala. vai chamar a diretora, certeza. ela é nova aqui.
mamãe me interrompe:
‘lipe, cuida do lucas. escuta aqui: a mamãe vai embora.’
(silêncio)
‘deixa o luke ficar com vocês em casa, quentinho… agora vocês podem fazer tudo que a mamãe não deixava, tá?!’
eu não consigo dizer mais nada.
‘lipe, escuta… mamãe não volta mais. nunca mais. independente do que te disserem, mamãe amou muito vocês, tá?!”
eu começo a chorar.
‘me diz, lipe! me diz!”
eu choro, desabo. sabia que ela não estava brincando.
‘eu também, mãe!’
‘filho, cuida do lu, tá? acredita em mim, tá?!’
Ela chora do outro lado.
‘tá.’
Silêncio. A ligação dura um século. Ouço um barulho de longe na ligação, como se fosse um apito de fábrica. Longo. Grave. Dura uns cinco segundos.
Ela desliga.

era verdade. a mais contundente.
mamãe não voltara à época ou agora. ela nunca mentira. não sei se era uma qualidade.
até hoje eu penso nisso. não na nossa derradeira despedida, mas naquele apito que disparava de longe; a ligação em segundos, aquele barulho, eu, desesperado na diretoria, depois o desespero no orfanato, na fundação…a ligação e aquele apito lá longe.
eu não odeio mamãe pelo que fez.
naquela mesma noite nos separaram de luke, de tudo… lucas ficou numa outra casa depois, eu também. não passamos mais noites quentes. fiquei sabendo que levaram o luke em um carro e o soltaram no meio do mato. bem longe.
um apito toca lá longe. e me chama, agora, enquanto escrevo.
e eu não sei o porquê de não ter raiva de nada. eu simplesmente não consigo.
ter raiva e ser triste… será que essa seria a combinação perfeita? o que esperavam de mim?
eu vim parar aqui por esse apito. o som me guiou até aqui. na minha terceira fuga da fundação, eu andava pelas ruas e escutei um apito de longe. decidi ficar aqui a qualquer custo. desde então, já me disseram tantas coisas. coisas que sei...
é claro que eu procuro mamãe em todas as mulheres, é claro.
é claro que eu espero algo. viver, escrever, mastigar, andar…
é claro que eu desejo que luke não tenha mais frio. às vezes choro pensando no barulhinho que ele fazia de noite, de pena…
é claro que eu nunca deixei de ser aquela criança. nunca. mamãe só esquecera disso, desse detalhe na época. ela fez uma decisão. não sei mais o que dizer. já disse tanta coisa para todas as pessoas que me perguntaram…
luke se foi no mato.
lucas, pelo que me disseram, está na Alemanha com a nova família. faz tempo. deve estar grande, bonito e forte.
tocou o apito de novo. descobri há umas duas semanas: é o apito do início do turno de uma grande metalúrgica da região; aqui, todo mundo trabalha nesse lugar. depois de dois minutos, o apito faz o seu último aviso. ela faz isso duas vezes de manhã, duas vezes à noite.
mamãe não está aqui. já procurei.
se o que me move é a espera (e não a raiva), o que há de especial nesse lugar?
por que fico aqui?!
(...)
juro, é o mesmo apito! eu sei disso. o mesmo lugar. o apito da manhã. era manhã (eu lembro), eu segurava uma tesoura sem ponta e um papel crepom roxo. lembro disso. lembro do caminho até a secretaria. o apito. grave. o fim da ligação.
cinco segundos. certinhos. cravados. cronometrados.
o som. grave. distante.
só não sei se era o primeiro ou o segundo apito de manhã… às vezes penso que era noite nos sonhos, que luke arranha as suas patas na porta e eu abro…
...quando eu penso nisso, nessas coisas, o dia já é outro. e eu tenho mais quatro apitos para ouvir no dia seguinte. sempre. para sempre.
é o meu turno.

segunda-feira, 6 de março de 2017

10 años no es nada

"Porra, ninguém lê essa merda mesmo... Precisamos de um cara do marketing, mano. Te falei, fazer site, promover festa, página oficial de Facebook, essas coisas...".

E foi o que eu tive. Bom, a minha equipe sugeriu... O cara chegou com um café do Starbucks, e numa sentada mudou tudo: blog com nome novo, novas pautas, networking... Sasporra.
Escrevi uma merda qualquer. Pagamos uma bela de uma fortuna, retiramos a grana do fundo dos investimentos. Fazer o quê?
No dia seguinte ele me chamou. De novo, tava lá tomando o seu Starbucks com nome escrito à caneta no copo:

"Vamos ver o seu último post. (3 segundos) Nossa, olha aí as visualizações! Caceta!".
Em vez da tradicional mensagem de "nenhuma visualização" tava marcando 5 visualizações e 5 comentários. Bem, se era patético ou não, nunca tinha acontecido.
"Se sente melhor?".

"Sei lá...".

Ele me explicou:
"Bom, vamos lá... não fica puto não, mas é tudo perfil fake. Eu que fiz. Belmont, não é da noite pro dia que um autor blá-blá-blá, etc".

Falou e balbuciou um monte de coisas. A equipe tava lá, toda "cordeirinho", toda preocupadinha comigo. Depois depositaram uma bela grana na minha conta para compensar o meu fracasso na literatura que eles investiram tanto; e ainda me deram uma viagem com tudo pago para Cancún!
Falaram muita coisa. Todas elas nada importantes... A verdade é que eu caguei para tudo; às vezes bate um vazio, às vezes eu não tenho vontade de escrever nada aqui ou acolá...

Sei que tenho amigos e amigas que me acompanham nisso aqui, lendo essas paradas, e isso é muito importante nas andanças pelo vale. Foi uma puta descoberta. Nada está muito perdido, muitos jamais tiveram o que eu tive; muitos tombaram com a papelada escrita e guardada para sempre numa casa que se incendiou. Eu não. Nada disso.
Nada nunca me desanimou na verdade; "like, dislike, compartilha!", nada. Nessa parada de escrever eu sempre enxerguei uma ponta de "algo". Sempre. Até mesmo quando não estava com um pedaço de papel, na missão, eu via "algo" se alimentando; e ali estava o propósito da coisa toda. Dessa "coisa" de escrever.

Se você leu alguma coisa aqui; se você não leu nada; se você leu um texto só e gostou, se você leu tudo e não gostou de nada ou se, até mesmo, você leu tudo e gostou de geral (o que é um pouco improvável...), isso aí é o que foi foda no processo todo. Como eu disse, muitos tombaram nesse lance de escrever, e eu permaneci só por insistência... Nada muito nobre ou metafísico.

Tudo isso serviu para suprir ou alimentar alguma "coisa" durante mais de uma década. Essa é a parada. "Não adianta pregar pra convertido", ouvi de um amigo que também não lê as minhas paradas. Tem que colocar a viola no saco e andar pelo Centrão, e tocar para gente apática e desconhecida; no meio da multidão tem alguém querendo ouvir uma moda nova. E os seus companheiros e companheiras, seus trutas, andam aonde a viola chora contigo. Sempre tem gente.
E se o fim disso aqui tá chegando ou não, tampouco me importou. Se é para acabar, vamos dar o último gole e sair atirando primeiro como o Butch Cassidy, como o Takeshi Kitano em "Brother"...

Se os porcos nos cercam, a gente revida. Sempre foi assim. Fora-da-lei para sempre.

E quer saber mais?!
10 anos não é nada. Manda mais nessa porra.