O maior presente de natal de Belmont foi a sua liberdade temporária.
Para um homem que despreza tal data, ele até que foi poupado de uma forma poética de tais constrangimentos e acabou ganhando sua carta de alforria num processo mais moral do que em favor de sua própria redenção e evolução pessoal.
Não pensem que ele pulou de alegrias na ocasião: numa hora quando chegava em casa após os primeiros minutos de sua suposta liberdade, levantou os braços e passou a mão nas folhas úmidas que ainda carregavam gotas de água de uma chuva triste e rápida de Gotham; como desejou que chovesse e isso não aconteceu, fez como os índios e bebeu das folhas e lavou o rosto.
Ele queria morrer como Willem Daffoe em "Platoon" com os braços para o céu vermelho e laranja tingido de napalm.
Ele queria beijar Apolonia antes daqueles braços alvos voarem para o céu numa curva sinuosa.
Mas nada disso aconteceu, amigo: ele, como David Bowie, ficou a maior parte do tempo com a cabeça enterrada na areia e quando a guerra acabou os seus torturadores lhe desejaram um "Feliz Natal".
E ele, confuso, não retrucou nada.
Se lembrou do passado e da rua alta que subia no caminho da escola só para ver o seu primeiro amor virar e olhar para algo que ele julgava ser a sua imagem.Pouco depois teve a chance de perguntar e ela lhe disse:
-É que cansa, eu paro pra respirar e olho em volta...
Não, não era para o jovem Belmont que ela olhava.Era o cansaço que produzia esse efeito nela e Belmont sorriu e pensou consigo bebendo a água limpa das folhas.
"estou cansado"
E no Natal pensou e descansou.E não porque era natal e sim porque um homem merece um dia de descanso e ele havia esquecido como era essa sensação.
Bebeu tantas cervejas sentado na garagem que seus olhos se perdiam em meio às humildes luzinhas que sua mãe comprara.Iluminavam a casa de um jeito desajeitado.A mãe dizia que o natal não era mais o mesmo e Belmont pensou num poema de Manuel Bandeira que sua linda professora de Literatura recitou na aula; e ele adorava Bandeira.
Pensou no mundo vasto, vasto mundo: talvez faria uma tattoo do Drummond na perna, daquela caricatura famosa do velho mineiro de Itabira.Encheria a perna de poetas.
E pensou coisas que não deveria pensar, mas sempre se pegava pensando.Deu de ombros como que dizendo para si mesmo "foda-se , não dá pra esquecer..." e lhe fazia bem pensar daquele jeito naquela coisa.Era humano.
O tempo passava de um jeito estranho para ele.
Ele se ocupava nas filas dos bancos arquitetando planos para um assalto perfeito: olhava as câmeras discretamente, ângulos e as posições dos guardas.Era um exercício para passar o tempo e pensava que era melhor do que perguntar a alguém da fila "se iria chover esta tarde".Teria se dado bem no mundo do crime e se contentava em pensar em histórias de crimes e em Bonnie & Clyde.
E as luzes se apagaram.
Ele não era livre .
Mas devo contar um segredo aos senhores: esboçou um sorriso torto à sua maneira pensando que estava despedido.
Desempregado.
Não sabíamos se a guerra continuava lá fora, só conhecíamos a prisão nos últimos meses.
Conversamos muito naquele tempo e jamais esquecerei aquele dia:
naquela terra, com o corpo enfiado inteiro na areia como tantas vezes esteve e aquele boné vermelho dos Yankees que não se separava da sua cabeça, eu o avistei.
disse a ele:
-belmont?sorrindo??
Ele disse:
-merry christmas, mr lawrence!