domingo, 23 de novembro de 2008

meu pai era um ladrão de trem

Mike.
A vida nos ensinou que os homens devem ser fortes e destemidos como Daniel Boone. Crianças têm todo o direito de chorar, porém o pranto possui, unicamente, a função de protegê-las do mundo áspero e seco das lágrimas de um adulto. Ao longo do tempo, filho, perceberás que as coisas parecem nos cercar como as sombras inevitáveis que mudam de ângulo quando o sol se esconde à tarde.
É como se fosse "aquele peso"... Uma corrente que te puxa.
Saiba que seu pai já sentiu isso, e que todos os homens e mulheres de verdade já tiveram aquela incerteza de acordar na própria casa e não saberem onde estão. Filho, é uma sensação de tatear a parede fria do seu quarto, e achar que é uma placa com um anúncio em outra língua. All right, mate?!
Saiba que os dias, estes (às vezes) se tornarão impossíveis até para o mais simples semicerrar dos olhos. Cuidado, pois estes dias são como paredes que te apertam num labirinto. Paredes, paredes frias... Sabe do que eu digo?! Se ao acaso souberes que teve um dia como esse, filho, esteja ciente que este significa um desafio; um confronto que nós devemos passar por todos os meios necessários. Todos.
Mike, verás que esses dias são como pequenos momentos, fragmentos de tempo que te aproximarão a todos os homens e mulheres, de igual para igual. O mesmo handicap, Mike. Lembra das lutas de boxe que assistíamos à noite nos quiosques?! São dias em que todos batalham não só uma luta gloriosa para a humanidade, mas, sim, o da própria sobrevivência.
Se você me perguntasse se a vida é difícil, eu tenho que lhe dizer que "sim". Mas se me perguntar que ela é impossível, eu lhe direi que "não". Definitivamente.
Seja forte, Mike, seja o homem que quebra as paredes. Que luta justo no ringue.
Seja tudo o que quiser, Mike.
Seja o filho que eu queria que estivesse ao meu lado. Você foi o melhor amigo que alguém pôde ter na vida.
Se eu não escapar dessa, cuide da Mundinha, e chore o que tiver que chorar no dia do meu enterro; mas, se no dia seguinte tiveres lágrimas em seus olhos, irás encontrar sua primeira parede. Nomeie-a e a atravesse de mãos dadas e unidas com sua mãe.
Filho, eu te amo.
A vida segue de alguma forma, você vai ver...
                                                                        Ronnie

domingo, 9 de novembro de 2008

o som dos passos

Hoje quero fuder.
Fuder com a tua vida, cara, não o seu cu ou a sua boca: fuder com o óbvio dessa vida tosca que você leva.Que eu levo.Mas há divergências (você pode argumentar que eu estou errado, mas não há tempo às vezes) e entre a minha vida e a sua, eu prefiro a minha na repartição,envelhecendo, lá, jogado com a máquina de escrever sem ver a sua cara como sempre fiz todos esses anos.
Me disseram que você fez piada quando eu conversava com as putas lá no Centro, que eu vinha tremendo conversando com as mulheres.Você viu isso?Eu fiquei puto, porque nesse lugar de merda todos tiram o maior sarro da minha cara há dez anos de uma forma silenciosa por que todos têm medo de mim.Já ouvi que tenho cara de psicopata, louco.Era o único respeito que adquiri na minha vida.E numa noite, ri de uma forma prazerosa constatando o que era o respeito.
E você,você é um bebezão que está na firma há menos de seis meses!
Vi você no corredor outro dia com aquela mandíbula toda simétrica e seus dentes brancos como os fantasmas de comerciais Colgate e tinha certeza que falava de mim para as garotas do escritório.Fui remoendo tudo e todos os problemas, dívidas, broxadas, surras e foras que levei na vida ,tinham o seu nome.
Daí, eu planejei te matar da forma mais cruel e lenta possível; de um jeito que a literatura, cinema ou quadrinho jamais imaginou.Conde de Monte Cristo se orgulharia de mim.
Pensei muito.Tanto, que doía a cabeça.
Depois, arrependido, decidi que um mês torrando meu cérebro em uma forma original de te matar, era ser perfeccionista demais.Você não merecia tanta dedicação da minha parte.Ninguém nunca mereceu tanta assim.
Eu era um bosta que não encontrava um jeito perfeito de cortar todos os dentes brancos da sua boca ou pendurar seu crânio de um jeito decente na Praça da República...
Eu tinha um canivete enferrujado.Ele está comigo desde criança.Decidi então te furar com ele: diversas vezes,repetidas e fortes na sua cara e depois no corpo todo.Já vi gente tomar facada em boteco: a faca entra e sai que nem um pinto com lubrificante; você parece papel, boneco de Judas, babaca de escola levando tapa na hora do recreio com um punhal te penetrando (não dá para fazer nada,as mãos batem no ar tentando impedir pateticamente); é lindo.Uma faca de açougue era perfeita, mas achei o canivete mais adequado, pois o fato de ele ter enferrujado, conspirava com a missão de ter estado numa gaveta por anos só para atravessar sua carne de uma forma suave e ferruginosa.Manchar teu sangue,contaminar algo que vai morrer.
Bem, você está lendo isso nesse momento na sua mesa.
Quando eu ver que terminou ou entendeu o recado e largar o bilhete para se proteger numa reação boba de defesa ou alerta, eu vou de encontro a você com o canivete enferrujado nas mãos e vou te perfurar várias vezes seguidas de uma forma cruel e vou enfiar todos os meus 43 anos de decepções no seu corpo torneado que você desperdiçou com exercícios numa academia para ser adorado, em facadas para destituir todo o seu tecido e te desfigurar para que o seu caixão esteja fechado e sua mãe chore sem poder te ver.
Depois, talvez me prendam.Talvez eu me mate lá.Talvez mate mais gente lá.
Mas, se você chegou até o fim do bilhete sem esboçar uma grande reação e sem rir da ameaça sem pensar que foi um colega do trabalho pregando uma peça boba, talvez eu lhe poupe.Se houve um grande crescimento pessoal ao ler esse bilhete nesse meio tempo da sua vida, talvez haja esperança para você.Para mim.
Mas não me venha com putaria, seu merda: coloque o bilhete de novo na minha mesa e não diga nada, certo!?
É, parece que esse é o fim do bilhete e se não pirar de vez ,você viverá mais e sua vida não acabará aqui.Não pelas minhas mãos.Mas não pense que se eu te ver morto um dia vou ficar triste.
Agora, você sabe o que fazer.Ande a até o final do corredor em direção ao meu cubículo.
O som dos passos em direção a algo que deve ser respeitado faz um homem pensar e envelhecer mil anos de experiência em alguns segundos que não terminam.E se você fizer isso ,talvez se torne um.
Um homem.Um homem que já teve medo.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

o envelope pardo

-A-alô??
Silêncio curto.
-Novecentos.-respondeu meio sem paciência.
-T-tá...
Desligou o telefone.Depois de uma meia hora comprou um jornal, sentou num banco do Ibirapuera em frente à fonte e esperou uma meia hora.Leu o jornal meio entediado porque não entendia mais nada do mundo.Nem de futebol: o seu time não tinha mais Ademir da Guia há um bom tempo.
Quando deu sete e meia da noite, puxou um pequeno volume de uma mala, colocou dentro do jornal e levantou.Foi embora tossindo.
Um corredor calvo numa suadeira do caralho com uma bandana preta passou , sentou-se no banco e pegou o jornal.Olhou para os lados.Guardou o volume da página 7 do primeiro caderno no seu bolso traseiro.
Viu o show da fonte psicodélica do Parque.Jatos de água coloridos.Achou “legal”, mas um pouco idiota...
Depois disso, fez mais uma corrida até a saída.Pegou um táxi botando os bofes pra fora e amaldiçoando todos aqueles idiotas que se vestiam de Adidas.Inclusive ele próprio.
Chegou em casa, tirou a bandana da careca suada e fedida e a jogou na cama desarrumada.
Abriu o envelope pardo.
Deu uma bela olhada. 20 segundos se passaram.
Fechou o envelope, deixou em cima do criado mudo.Foi tomar banho.
Uns vinte minutos depois, uma mulher abriu a porta com muito esforço.Jogou a bolsa numa cadeira.Viu o pacote de cara.Óbvio.
Olhou para dentro do envelope, abrindo com os dedos.
Balançou a cabeça como se fosse uma coisa bem idiota.Era, na cabeça dela.
-Tô te esperando.-gritou meio brava na porta do banheiro , tirando a calcinha.
-Tá.
O careca abriu a porta de toalha e viu a mulher pelada na cama de perna aberta e com uma puta cara entediada de esperar.
-Você viu?-disse o careca
-Vi, vi sim.Que grande merda.
Ele balançou a cabeça meio triste.
Abriu o envelope, pegou alguma coisa dentro dele e foi para a cozinha.
Voltou com um copo nas mãos.
A mulher, puta de raiva por esperar, grita:
-E agora!?
Silêncio constrangedor de 5 segundos.Colocou o copo em cima da TV.Olhou para o relógio.
-Bem, agora tem que agüentar mais uma meia hora...