sábado, 19 de dezembro de 2009

caeiro contaminado

Ao entardecer todas as pessoas que passam pela Igreja descendo a Consolação fazem o sinal da cruz. Eu não. Eu já fiz isso algumas vezes na minha vida, mas não sabia o que significava, tipo ouvir Scorpions: não entrava, não se acomodava na minha cabeça; por isso não me apeguei ao sinal correspondente, ritual ou coisa que o valha. Eu penso; dentro da minha cabeça tem uma voz chata e grave que não cala a boca, ela pede por linhas escritas e eu - num misto profano de dever e sobrevivência - (às vezes) não sigo o pedido da voz que não sei se é a minha consciência ou a “palavra pura” querendo sair do meu corpo pelo exorcismo do papel em linhas tremidas.Então essas linhas estranhas me trazem de volta a um sentimento quase que equivalente ao dos cristãos que fazem sinal da cruz quando o ônibus passa rápido pela Consolação-sentido-Centro.Todos.Todos menos eu.Um sinal matemático para exemplificar que sou o “menos”, eles são o “mais” através dessa representação idiota.Se o ônibus bate, e a gente se fode, eu tô lá sem um lugar para ir acomodar a minha alma, essa coisa que sai do invólucro permanentemente que eles chamam de “corpo”.Muita metafísica para pouco sentido, né?!Muitos gestos de fé envolvidos: de um lado a humanidade às voltas com os seus rituais quando o ônibus sobe, de outro, os homens despejando energia em linhas invisíveis que às vezes nem são traçadas num guardanapo de boteco.Igrejas. Papel. Palavras nos muros da Consolação.Grafite. Mundano.Ele diz que “a gente passa mais tempo no ônibus do que com a família”.Verdade.Poucas vezes a palavra “verdade” foi tão “verdadeira”; é, escrevo frases desse jeito e fico triste, limitado em um vocabulário viciado que nem a minha compulsão por comer Fofura em momentos que o ônibus desce.Vou indo.Balança tudo lá pros fundos onde gosto de sentar e colocar a cara no vidro; isso quando consigo sentar...Bate tudo: peitões balançam, a caneta não serve nessas horas, o cérebro parece solto, uma visão de um seriado antigo passa na sua cabeça, um sorriso vem na mente pensando na sua mulher e a promessa de um céu à minha maneira passa em milésimos de segundos sem oração: meu jeito Caeiro de avaliar a terra do asfalto e as linhas brancas desenhadas no meio fio descendo a Consolação.Voltamos.Rebouças, cruzamento monstro com a Faria Lima, Eldorado (a gente se sente com mais ar para respirar quando chega lá), ponte, rio Tietê/Pinheiros/Tejo (gosto de chamar Tietê porque são todos irmão sujos e forçosamente charmosos, pai de toda a podridão e onipotente em simbologia), Raposão, anda, vira direita/esquerda, cachorro fica contente ao me ver, eu fico mais ainda, porta, sentimentos sufocados da perda do melhor amigo que eu afavaga, um ar de fraternidade envolto numa depressão sufocada por laços umbilicais que desejam a sua volta à força para o ventre ensaguentado; a morte de volta ao parto, a barriga de onde nunca deveria ter saído, muita metafísica, muita lembrança, muita punheta para ficar em paz, muitas chaves sendo viradas desde que tive o privilégio de me trancar no quarto vermelho e mais espaçoso que desejo/mereço, um livro da Florbela Espanca jogado em cima da cama desarrumada.Nada de bíblias ou orações.É o meu jeito de descer o busão todo o dia balançando, muita voz que não sabe para onde ir, a paz da palavra encontrando o papel desembocando no mar como o esgoto cheio de merda abraçando novas águas, porra, batom de mulher, animais mortos, poemas rasgados, fotos de amores antigos e desenhos adoráveis de giz dos filhos no meio de tudo...

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