Tenho um coração desenhado no caderno. Tinha. Ela que fez. Desenhou, uma vez, com uma canetinha vermelha e fez um jogo de cores. Milhões de coraçõezinhos unidos “uns aos outros” formando muitos corações. Uma infinidade. Coisa geométrica, trabalhosa e, de certa forma, genial. Mas reparo, reparei, na verdade “paro pra pensar”, que, dois corações desenhados e unidos um ao outro formam, formavam, uma imagem pavorosa. Conhecida.
Deu o estalo, dera, e nesse momento “eu percebi” que a aberração que me atormentava em noites ígneas era o monstro que possuía a forma de dois corações: a imagem pavorosa da minha infância era ele, em vermelho, pingando sangue-cor-de-canetinha. Pavoroso, assassino; desejando chupar o sangue pelas minhas orelhas.
Dois corações unidos. Sobrepostos em jogo, um encaixando ao outro, foi assim mesmo...
-Amor, tenho medo de ti.
Disse isso a ela naquela tarde: matei deliberadamente, e inconseqüentemente, os beijos que iriam nascer e o amor que iríamos cultivar, brotar - e quem sabe- sufocar de forma cruel no nosso futuro relacionamento. Não nasceu: “morreu” naquelas (“minhas”) palavras. Matei.
-Por quê?
-O monstro, Cláudia! O monstro da minha infância!! Foi você que o criou!
Cara de tacho, estupefata, abobalhada; uma cara estúpida e redonda: levaram, na verdade se foram, alguns segundos para eu achar ela feia, gorda e ordinária. A criatura d’ela me devia noites que não dormi, xixi que não fiz na escola e coragem para enfrentar a morte quando papai precisava. Esse monstro me espreitou até a adolescência, e ela (CLÁUDIA!!!!) era a arquiteta doentia desses castelos retorcidos que eram a minha mente semi-adulta numa tarde na escola cursando o supletivo à noite.
O monstro me deixara lerdo, por isso estava lá com os “lerdos”.
Cláudia era patética, nos unimos por nossa essência malcheirosa, deformada e, de certa forma, imaculada na nossa ignorância consentida.
Ela era o monstro. Desenhou no meu caderno.
Jamais pensei que dois corações unidos, um completando o outro em direções contrárias, formassem a imagem que me enlouqueceu e tirou a mulher que me amava, pois (mais tarde) me foi revelado que ela me amava incondicionalmente, e estava morta àquele instante da epifania em Lisboa num cemitério pobre.
Pobre Cláudia, jamais soube o que quis dizer; passei a evitá-la todas as aulas e abracei uma amiga dela certa noite. Elas se diziam “melhores amigas”. Cláudia sumiu da escola e eu me engracei com a “bela” melhor amiga.
-Que monstro?
Contei. Disse a “essa”, que se dizia interessada por minhas histórias de madrugada enquanto buscava um papel higiênico.
-Você é louco, mas eu gosto.
Naquela noite o monstro voltou. Agitei-me como louco de terror. Hospital. Luzes. Tomografia. Eletroencefalograma. Exames. Amostras.
Eu disse que era o monstro.
-Foi Cláudia que me fez esse mal, doutor.
Se riam. Saiam à francesa.
O monstro de dois corações apareceu todos os dias desde então, e hoje eu vejo que ele correu atrás de mim pela Paulista.
Não me deixe morrer assim, pelos corações unidos, pelas sensações que eu deliberadamente assassinei, leitor.
Acredite em mim, ele existe e eu sei que me olha agora. Dois olhos, profanos, nascidos da perfeita simetria de corações orientados ao norte e sul.