terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

as cartas*

Os espelhos.
Não há imagens a serem refletidas nesse lugar; creio que a necessidade estética deva ser renunciada perante a intrigante - e indômita - realidade da dúvida.
No entanto, creio que as imagens continuam a aparecer em elipses; insistentes, elas aparecem em reflexos de colheres, pratos e vidros do refeitório. Olhos enormes, amarelos, vítreos: escamas e o inferno na língua de cobra. Permanecem as mesmas observações, mas, infelizmente, hei de me contentar com o desenrolar inevitável das cartas.
Cartas.
Recebi uma carta de Giles em um inverno frio, desses que remetem a situações distantes e de amigos de infância que rodopiam e atiram bolinhas de neve. A missiva era datada de Londres, Inglaterra! Giles estava na terra de Sir Arthur Conan Doyle! Imagine só, aquele meu irmão tímido e arredio na infância perambulando em Piccadilly Circus! Baker Street!
Giles disse ter encontrado máquinas incríveis que limpam o chão e tapetes, e uma turba realmente interessada no progresso.
Ele mencionou “turba”: eis a escolha de linguagem do meu querido irmão... Este meu irmão parece estar mais habilidoso na escrita; pois os detalhes da cidade inglesa ressaltam aos olhos como se estivéssemos vendo as calhas do limpador de chaminés de William Blake. Londres: sombria e esplendorosa, abrigando o meu pequeno irmão...
Em pouco tempo, Giles se tornará alguém importante e influente na Europa. Assim espero. Espero. Continuo na esperança de vê-lo aqui...
O tempo passa, e recebi mais uma carta. Ele, meu irmão, descrevia Paris e as luzes ofuscantes da boemia com os seus cabarés burlescos. Detalhes luxuosos, ornamentos, veludo, cigarros, batom; mas creio que ele só observa o mundo como o faz um grande escritor; taciturno como Maiakovski escrevendo uma carta num café. Giles é uma criança – não pode conhecer tantos detalhes mundanos (!); sua imaginação é livre no Velho Mundo.
A próxima missiva estava suja de terra, escrita em um lugar chamado Tsaritsyn; a ao que me parece, a sua habilidade precoce na escrita garantiu um posto a ele; um ofício para tecer e descrever comentários sobre a campanha britânica!
Meu irmão numa guerra!!
Estremeço.
A cada carta uma descrição: aquela visão infante de um mundo inocente em bunkers. A cada carta um sentimento regado a tiros de canhões e baionetas. Tenho medo. As cobras mostram escamas terríveis e belas como pinturas futuristas. Cada vez mais.
As cartas vinham dos mesmos lugares, mesmas imagens e cacofonia. Após um tempo, não as recebi mais. Minha vida entre os espelhos começa.
Pergunto sobre as cartas de Giles todos os dias à enfermeira Shelley, e ela me diz, sorrindo, que “chegarão um dia”; mas eu reluto e não descanso: ela só me diz para tomar todo o comprimido com água para ficar calma.
Daí eu bebo todo o conteúdo e mostro a língua para fora. Shelley meneia com a cabeça. E a partir desse ritual diário, uma serenidade se apossa de mim; e penso que, talvez, as cartas realmente cheguem...

* trabalho de faculdade inspirado no livro "A menina que não sabia ler" de John Harding.

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