quinta-feira, 29 de outubro de 2015

punição pela virtude/vingança pela honra

Estou sozinho. Sem família ou amigos. Em um lugar ermo, indefinido e virgem; hei de encontrar a paz que me foi relegada. À minha volta, eis o som dos grilos e um riacho que bate nas pedras despreocupadamente. As chagas nos meus pulsos, o sangue coagulado nos joelhos; as roupas estão duras pelo sol e lama. Minhas mãos estão atadas e não consigo me desvencilhar. Há alguns dias encontrei um pé de manga e o chutei até cair algumas frutas. Cravei os caninos impiedosamente, e lhes digo: aquela foi a melhor refeição que já provei; não menciono o fato pelo estado em que me encontrava e, sim, pelo fato de que o fruto estava tão doce e limpo... eu chorei de felicidade. Eu sabia, indubitavelmente, que conseguiria me desprender daqueles grilhões; que fugiria do inferno de estar só.
Tanta era a certeza, leitores, que esse pequeno manuscrito veio parar em suas mãos.
E hoje... eu começo a caça.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

eu não consigo competir com a juventude

Se os que me viram já cheia de graça
Olharem bem de frente para mim,
Talvez, cheios de dor, digam assim:
"Já ela é velha! Como o tempo passa"!..."


Florbela Espanca - Velhinha


Eu não consigo.
Eu não consigo evitar os cabelos brancos que proliferam em meu corpo, começando na barba até aos pentelhos, em uma profusão metastática e implacável. Eu não consigo evitar o ganho de peso involuntário, a crescente decadência da minha aparência e as futuras surras que levarei dos mais jovens e preparados. Dos empregos que perderei para os mais prodigiosos e infantes; das mulheres que me abandonam para os mancebos mais atraentes e da constante decrepitude que me assola por completo. Dos smartphones que não possuo e se antecedem na arte da conquista; do currículo (inexistente) que é comparado ao mais jovem em uma mesa corporativa; do jogador que sempre tem um Full House me quebrando a cara na mesa aonde aposto tudo olhando para o fundo de um copo de cerveja. A dignidade...
Sem piedade.
Não há nada mais odioso que um jovem que acha que pode te dar uma surra.
Eu sempre fui velho, Florbela…
(como você…)
E todos eles, sem exceção alguma, são mais jovens. E eles buscam, cada vez, mais um confronto comigo.
Eu não consigo evitar em ser um completo derrotista por algumas vezes, e isso é o que me faz escrever o quanto eu não consigo competir com a juventude; cada vez mais fico mais velho, sem atrativos, sem brilho, sem cortes de cabelo sofisticados, sem barbas lustrosas hipsters e sem roupas (e aparência) fotogênica nas redes sociais. Tornei-me um completo tiozão, e o rótulo em nada mais me assusta.
Eu não consigo competir com os mais jovens.
Contra eles. Perco-me em pequenas querelas imaginárias; o meu olho voa com um esguicho de sangue e eu dou risada da surra como o puto do Camões, elucubrando o próximo que moerá os meus ossos e gozará da minha incapacidade de revidar quando estiver com supercílio arrebentado no chão lamentando tudo o que perdi com a derrota. Eu…
não…
...consigo!
(Eu sou o próximo leão exilado na floresta a pensar sobre as glórias passadas, as chagas que não podem ser mais lambidas pela companheira secarão ao vento… meu pêlo emaranhado e duro, com o sangue preto tingido e coagulado pela lua, possui oxigênio e lembranças da surra dos leões mais jovens da Gangue da Acácia… o silêncio se estende pela floresta com a cacofonia noturna dos residentes)
Eu não consigo competir com os autores mais jovens, com o seu vocabulário imbecil e com as frases feitas e estéreis escritas numa tela touch com hashtags que propõem um adultério ou algum nude; eu não consigo… os livros mais lidos da Veja são dos mais jovens e isso é muito triste e deprimente: tudo isso é a obra dos mais jovens!
(tudo é culpa deles! a Veja é feita por gente jovem! às vezes eu não me controlo e quero dar porrada nos mais jovens, esses filhos da puta com risada cínica! às vezes eu arrumo treta no bar com eles de graça, admito!!)
Até mesmo os mais traidores e fura-greve que conheço são os mais jovens, e isso, por si só, é mais deprimente que a literatura jovem, produzida por gente jovem, com seus textos canhestros nas listas de best-sellers jovens!
O que eu digo aos mais jovens é que ‘tentem a sorte’, e busquem derrotar (sempre!) o mais velho, mas que jamais se esqueçam que um veterano é um sobrevivente. A gente aguenta muita porrada e um soco bem colocado muda tudo.
Foreman tá aí, ‘exorcizando o fantasma de uma vez por todas’...
Mas, às vezes, eu - definitivamente - não consigo competir com os mais jovens.
EU…
NÃO…
CONSIGO…
!!!
(...)
Deus, eu não consigo …
…caralho.
(snif... snif…me dá meu copo...ei, lembra daquela vez? daquela vez que a gente… que a gente...meu, que porre a gente tomou! e aquela mina que eu comia? cê lembra como ela era gostosa?... e aquela outra, haha!!!... cara, e a minha graduação; e os trampos elogiados pela minha banca, hein?!.. minhas publicações!... cara, eu ganhei tanto dinheiro naquela época!… tá ficando tarde… sei lá que ônibus passa por aqui.. me dá uma carona?!)