sábado, 3 de maio de 2008

são jorge e o dragão.

-Ok.
-Acertado?
-Sim,pode apostar.
Naquela noite eles pegaram o Ipiranga e se sentaram no fundão.Feriado prolongado ,busão vazio.O cobrador capotado de sono ,tremulava de um jeito engraçado quando o buso passava por buracos.
Deram risada vendo aquilo.Olharam um pro outro.Aquela seria uma daquelas coisas que dariam risada durante anos ;lembrança boa para afastar a morte quando tivessem velhos.
Là atrás ,o mais forte segurou a sua mão .O mais fraco olhou para os lados ,num instinto antigo quase que involuntário,numa tentativa inútil de perceber olhos que atravessavam a matéria.
O mais forte balançava a cabeça ,vendo a patetice do seu lindo namorado.Naquele momento, percebiam que estavam juntos e que nada mais importava.
Ele retribuiu o aperto e enlaçou as mãos com ele sem medo.
Desceram.O mais fraco estava com medo.
Mas ele,o mais forte, disse que o esquema era garantido;olhava de um jeito que dava para confiar.
Pularam o portão de uma casa como o combinado há uma semana,arrombaram a fechadura e entraram naquele sobrado estranho do lado de uma pizzaria com uma pintura horrível na fachada.
Ficaram maravilhados com o silêncio do mundo que tanto esperavam .
Treparam e pela primeira vez se sentiram sozinhos nesse mundo .Não tinham mais pudores .
Naquela noite se vingariam do mundo e cuspiriam na cara de todos vocês:pai ,mãe ,padre,os escrotos que deram porrada neles a vida toda ,as senhoras balançando a cabeça e esse mundo pretensamente moderno em que tinham que dar as mãos escondidos como vampiros em cemitérios, pela Avenida Paulista quando ninguém mais caminhava pela cidade.Vingariam-se de tudo e de todos ,beijariam a boca um do outro ,sim e beberiam vinho dizendo um pro outro que se amariam para sempre .E quando gozassem e explodisse aquela porra como grito guardado no peito,poderiam berrar com vontade aquele urro de raiva e alegria que esperavam a vida toda.
E foi assim.
Quando desmaiaram de sono de tanto treparem e chorarem por um mundo que só existia naquele quarto com uma pintura de São Jorge matando um dragão ,os sonhos em suas cabeças se preparavam para nunca mais serem realizados ou quem sabe,num outro quarto que não os pertencesse.
O mais fraco, chegou a conclusão que ele era a pessoa que procurava desde que nascera.
Acordou com o barulho de um tiro as 5:37 pelo rádio-relógio piscando de um jeito estranho.Mais forte não estava com ele ali nos lençóis..
Desceu a escada correndo pensando que o seu amor que acabara de nascer estaria morto ,pois aquilo era demais de bom para um desgraçado como ele fôra a vida toda;imaginava o corpo dele nu com uma bala na cara e ele choraria em cima dele desfalecido.
Tinha certeza que veria isso.
Na sala ,uma penumbra da luz do banheiro acesa chegava pálida a sala e seu amado,o mais forte, chorava com uma arma na mão ,agachado sobre o corpo de um velho barbudo se contorcendo em dor estirado no chão segurando o pescoço .
Agradeceu por não ser o seu amado com a bala no corpo e sorriu de um jeito tímido ,egoísta e sádico dentro do seu coração.Não se sentiu culpado ;não devia.
Abraçou-o todo assustado.
O mais forte não se mexia,só chorava.
-Quem é esse cara?De quem é essa arma?Cê tá bem,querido-passava a mão na testa do outro que suava quente como se tivesse febre.
Ele enxugou as lágrimas com a mão que segurava o 38.
-È meu padrasto ...-disse o mais forte.
Despencou em lágrimas.
O mais fraco se arrepiou ;toda a conversa que tiveram numa noite sombria pontuada por Johnnie Walker comprado na Pajé foi revivida .E o local se encaixava com a facilidade da noite em si.Teve uma clareza de tudo que ia acontecer e que tinha acontecido.
-È "ele","aquele" ?
Não respondeu.
O mais fraco largou o corpo do seu amado; também não pensou.
Foi para a cozinha .Rápido.
O outro ficou ali vendo o velho no chão com a arma na mão.O velho segurava a sua perna de um jeito fraco,com um buraco de bala no pescoço cheio de sangue empapando o terno todo.
O mais fraco veio num passo rápido, decidido e voltando para a sala.
Bateu na cabeça do velho com a panela de pressão mais gigante que conseguira achar embaixo da pia cheia de panelas e baratas .Chutou a cara dele com raiva e numa fúria batia a panela gigante com força na cabeça do velho repetidamente até quebrar todos os ossos do crânio do velho .
O mais forte se assustou,afastou-se e sentou no sofá vendo aquilo sem poder impedir ou fazer algo.
Bateu e chutou até não aguentar mais.Resfolegava de um jeito estranho .Não tinha mais força.
Todo banhado de sangue e pedacinhos do velho,veio abraçar o outro .
Não se mexeu.Não retribuiu.
-Eu te amo.Eu...
O outro disse que acreditava ,quando sentiu o sangue do seu padrasto tocar o seu corpo.
-Vamos para sempre ficar juntos não ,é!?Esse maldito não existe mais agora .Ele não vai mais voltar .Te amo.
E abraçou o mais forte que não retribuia o abraço e parava de chorar.Ficava frio.
Decidiu abraçar o seu vingador .Se beijaram na boca .Fechou a porta correndo e olhava para fora,vendo se alguém tinha ouvido aquilo.
Convenceu o outro a tomar um banho e disse que pensaria no que faria com o corpo do velho enquanto isso.
-Vai lavar esse sangue do corpo.Tudo vai dar certo.
-Te amo.
Quando ouviu o barulho do chuveiro sendo ligado ,o mais forte saiu correndo pela porta não ousando olhar para "aquilo" ali na sala.Pulou o portão.
Correu até não aguentar mais.
Nunca mais viu o mais fraco.
Foi preso três anos depois no Paraná num puteiro que trabalhava.
Denúncia anônima.Pagou sozinho.
Se enforcou numa noite infernal de calor com lençol na grade da cela ,umas quatro da madruga .Um preso que dormia amontoado no chão de corpos ,acordou com o barulho e assitia a cena.Falou meio baixo .
-Ô,a bicha vai se matar ,Tonho.
-Deixa ela ...-disse meio torto e bravo.
Na verdade,Tonho sonhava com a filha mais nova que chorava no colo da mulher e queria brincar descalça na rua com os amiguinhos.
E ele deixou.Assistiu a morte.
Aprendeu que se um dia tivesse que se matar ,não faria daquele jeito...

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