VI
A mais bonita de todas.
Jane, a “Christine sem a doçura”. Orgulho da beleza dos Bennett.
Beleza que não a salva do poço sem fundo da decepção do amor por Bingley que a abandona indo com as irmãs para Londres. Sabe, Jane não possui a grana necessária para surgir uma aliança blasé insuperável, portanto, as irmãs que a odeiam fogem com o irmão para Londres, longe de tal perigo.
Respiro, devo “estar lento” como diziam no meu bairro. Cá estou eu suspirando de pena por uma jovem que vê sonhos de algodão bestas demais sendo esmagados com a crueza do mundo.
Assim, a bela Jane vai conhecendo aquele fundo de espuma no copo que eu olho agora, só que o meu, vai descendo enferrujado há muito tempo nesse lugar. As páginas se desfazem. Bingley está longe. Christine está perto, lá embaixo acessando e-mail no notebook, vendo programas idiotas. Os nossos corações, Jane, se vão com eles, lá embaixo.
Aguardamos uma carta de Londres, Jane. Lá embaixo na cama, a TV tá alta, Christine ri alto como eu não ouvia há muito tempo. Nossa, há muito tempo mesmo. Um riso alto demais, arrepiante.
Que ecoa.
É o silêncio todo num sábado à noite. Risos dela.
Largo o livro por um momento pensando o que pode acontecer a Jane.
Mas...
O sótão carrega uma coisa pesada essas noites em que mal nos falamos, e o riso alto e debochado dela provoca um troço estranho em mim. Fico pensando nas noites que passamos assistindo TV e comendo pizza na nossa primeira casa.Um riso nos campos verdes do interior, várias épocas depois um riso ecoa, páginas nas minhas mãos e a indecisão de gritar para ela o que eu estava descobrindo.
Mas o que eu descobri aqui nesse sótão cagado de bosta de rato?
Largo o livro, beijo as páginas amarelas que me salvaram de não perder a cabeça; Jane, não beije as cartas da irmã de Bingley, essas cartas carregadas de veneno.
De repente, aquele impulso de ver Christine passa. Deito. Pego as páginas e volto a ler, pouso os olhos naquela letra arcaica e linda. “Não sei se a autora é bonita”- penso.
-Vem ver, querido!Tá passando aquela reprise do Saturday Night Live do presidente Reagan, lembra?!Vem!
Fico olhando ela assombrado. A minha imagem é patética. O cenário, igualmente.
-Nossa, que lugar desgraçado esse que você tá escolhendo para fugir de mim, hein?!
Diz isso linda, de um jeito divertido, como se a imersão naquela ficção fosse improvável, um conceito de filme de ficção-científica, uma piada de mau gosto.
Levanto calmamente e dou um beijo na testa dela.
Ela me abraça de um jeito caloroso, que demonstra não ter acontecido nada nesse tempo.
Acho estranho. Não retribuo o abraço caloroso que ela me deu, fico ali, tenso, demonstrando o orgulho dos velhos homens de escudo, sou um pouco Darcy, analítico-doentio em busca de uma retribuição por todo o meu sofrimento e confusão, por tentar amar ela novamente nessa casa. Por sofrer sozinho.
Ela sente. Me empurra com uma violência sutil. Sai andando com raiva.
Foi rápido.
Uma porta bate com força. Ecoa.
Estou me sentindo idiota. As páginas se desfazem.
Pouso o olhar nas páginas que estavam ali no chão, demonstro preocupação em ver elas ali tão abandonadas, “podem estragar, soltar a cola”. Me preocupo. Continuo me sentindo mal, idiota.
Volto a ser o rei de toda essa poeira que deveria ser queimada e esquecida pelos homens de escudos.
fin
fin