quinta-feira, 25 de julho de 2013

adágio, neon

Eu apoio meu queixo sobre os ombros dela. Sinto, desconfio, que todas as respirações – e contrações futuras – serão mais excruciantes. Demoradas. Nos olhamos e, pela última vez, temos a secreta e inexaurível angústia/certeza que o destino nos separará de forma cruel. Implacável.
Foi assim, desta forma vim parar nesta cidade. Como um pedinte, um mendigo que busca de bairro em bairro, cidade-cidade, um canto distante do inferno; onde – ao menos – pode-se fechar os olhos sem se preocupar em ser espancado ou cuspido.
A distância, lá atrás, era um problema. Hoje, é uma benção.
O último níquel foi gasto na pinga mais vagabunda da história. Nunca fui muito chegado a esse veneno, mas a trajetória  à frente faz você ser mais humilde e esperar menos das coisas; dito isso (e engolido o álcool), tomei rumo às ruínas de um lugar engolido pelo tempo e pelo desastre das políticas públicas inefetivas. Ali, naquele lugar, o vento era carregado de ferrugem das caixas de azeite de um porto que já foi próspero; onde homens tinham empregos e orgulho das coisas tolas e as crianças viviam correndo entre as gaivotas que planavam brincando com o vento. Vejo que ali, mais ao centro da orla central, há uma praça e a última inscrição em spray neon de um profeta que deixou ali uma lembrança:
“Adágio, lento e inebriante ao movimento das cordas”
Hoje – após o colapso – aquela cidade devorou-se a si própria. Entre dejetos, animais, salários-mínimos e bonecas quebradas; expeliu qualquer traço do homem e nada mais esperava da carne. Consumia a poeira, (e dela) vivia uma nova síntese da vida: ali se criara, corroendo o casco de navios, casas e latões; como que num câncer ferroso que engole a tudo e todos numa fome insaciável. Essa era a vingança da cidade contra os homens. Sua sina era consumir. Devolver.
Essa era a cidade que chamei de “lar” após a longa despedida. Entre o cheiro de perfume e abraço com gosto de café.
O tempo – inominável – plantou algo em mim. E dentre todas as casas abandonadas, nenhuma me aprazia. Depois de deitar em todas as casas imundas, decidi que não teria uma morada fixa. Em muitas casas eu reinaria, em muitas casas, eu, o homem, deixaria o seu traço torto; contaminando e envenenando – novamente – o excesso ferroso da miséria que assolou aquele canto esquecido por deus. A angústia ainda mora em mim. O adeus reencenado.
A poeira engoliu.
Eu seria o vírus. A metástase.
No entanto, aquele recanto dos prostrados me acolheu de forma inesperada; e como um pai leproso, beijou o filho mirrado e famélico com suas pústulas e tumores à mostra. Acolheu-me e estendeu generosamente o seu dom funesto ao primogênito original. Era como uma brisa ferrosa e asquerosa sussurrasse em meus ouvidos, e me conferisse uma críptica mensagem dizendo que os seus domínios deveriam ser “desbravados”.
Engoliríamos o mundo.
Engolfaríamos as ruas com o cheiro da brisa leve da chuva e todo o ar seria leve. A água salgada começava a me acompanhar, banhando os meus pés para onde eu caminhava. Os pés nus, ordenados pelo instinto, pelo sussurro da cidade. Eu cairia e me jogaria como a uma criança em suas algas, afogando entre o sal; abençoei as águas quando entrou no meio da cidade e encontrou-me no meio da avenida com os seus tumbleweeds de jornais que anunciavam o suicídio de Getúlio, a cachorra espacial Laika ou as notícias garrafais do conflito armado em Saturno. A areia banhava as tiras das minhas sandálias, engolindo toda essa sujeira e degeneração do mundo, outrora, dos homens.
Disse-me:
-Seguiremos. Juntos.
Eu caminhei, e o ar ferroso  e o oceano pútrido eram os meus asseclas. As crianças corriam quando nos avistavam, os animais se debatiam freneticamente e os homens perdiam algo fisiológico ao nosso lento – e inevitável – encontro. O rastro do mar e o meu passo eram incansáveis.
Andamos, e o mundo todo era aquela cidade; de uma província  veio outro mundo de concreto e não aturamos mais o barulho. Depois de tantas visões, sussurros e trevas; a imensidão aquática engolfou o longo caminho e já não havia mais nada. As casas, todas elas, eram o recanto. Meu.
Todas as casas.
Todas as moradas me acolheram. E todas, sem nenhuma exceção, eram a composição do ar e mar que banhava os meus pés.
Eu cheguei ao meio do mundo e continuei. Oceanos. Ilhas. Ruínas.
O mundo era o meu lar. E eu o abençoava. Acolheu-me de tal forma que quis me dar às extensões divinas. Minha dor – a dor do homem que pousou e nunca mais a viu num abraço de morte e despedida – era o bálsamo do sopro de vida para aquelas águas e ela, de uma forma sombria, cedeu o seu poder sem pedir nada.
No entanto, os pés cansaram.
O mundo acabou. Tantos gritos, máquina e concreto abaixo das águas. Nossas águas.
Os pés cansaram quando cheguei novamente à praça. O sangue se unia ao sal. A cidade estaria ali. Intocável.
Lá estava uma figura.
Ela acenou.
Ela chorava.
Lá estava ela.
Eu a abracei e disse:
-Amor, você não sabe o quanto andei para te encontrar.
Ela me beijou nos lábios. Cheiro de café, leve e sutil. Disse, sorrindo:
-Eu sei sim. Agora o mundo é nosso. Jamais nos separaremos.
Duas almas se beijaram no mar lodoso em algum confim do universo.
Todas as moradas eram nossas.
E, do poder da destruição das almas, sempre algo mais indomável se criaria.
Nos beijamos. Os corpos.

E eu apoiei meu queixo sobre o ombro dela.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

quarto vazio

Desceu as escadas. Suas mãos deslizavam pelos corredores sem tinta. O prédio era pequeno. BNH, aluguel razoável. Despreocupado. Mastigava chiclete. Pulava os lances da escada. Três pequenos andares. Logo, chegou ao destino. Mulecada brincando com cachorro. Pega-pega. Grades à sua volta. Gritaria estridente. O lixo ficava num quartinho cheio de moscas. Camisinhas no chão. Vassouras. Brincou que era um astronauta. No lixo do prédio, crateras. O espaço, imundícies. Desbravava. A prima veio atrás, curiosa. Ele era tímido. Ela era esperta e vivaz. Eram jovens. Eram crianças. Eram nada mais que vidas em contínuo e desesperado desenrolar de acontecimentos interessantes, povoados de dias longos e todas as situações insólitas e fascinantes que jamais viveriam novamente; eram duas crianças, filhos de pais que eram irmãos de sangue, que se odiavam secretamente e que praticavam o estranho  - e sagrado -  direito de crescer, trabalhar, odiar e ensinar a ingratidão e indiferença a seus filhos. Crianças. Eram filhos de pais separados, que eram irmãos, que não eram muito próximos e não deram as mãos no leito morte da mãe ou do pai; o pai de um deles era um bêbado, o outro era apático e frio. Eram pais que não tinham laços. O astronauta. A menina esperta. O lixo. O quarto.

Somente um fragmento perdido no tempo.
A prima nunca conseguiu brincar com o primo.
O astronauta preferia voos introspectivos e era pouco versado na arte da companhia.
A espertinha, com sardinhas e um gorro vermelho, era brilhante. E – estranhamente – era apaixonada pelo primo. Ambos com oito anos.
Só viram o beijo pelos atores da TV.
Só viram as pessoas pelas grades.
Assistiram, impassíveis, diversas reuniões de família sem perceberem o quanto eram indesejados no mundo.
Um quarto vazio cheio de lixo virava exploração.
Um garoto entediado, para ela,  era um amor retocado pela incompreensão e afeto juvenis.
Eram recortes, vidas que davam um tempo, sacolejavam entre dias estranhos e gritos sufocados nos telefones celulares dos pais; sobre risadas nervosas de bêbados em festas de família e, ocasionalmente, o afeto de estranhos que os amavam mais que tudo na vida. Mas eles jamais saberiam de tudo isso em um quarto do prédio cheio de lixo, sêmen, baratas pequenininhas e todas as revistas Veja recortadas e despejadas no lixo.
O astronauta.
A garota esperta, curiosa.
Naquele ano se separaram: um foi para o interior e outro para um bairro mais pobre.
Um era do interior.
O outro da periferia.
Escola boa, escola pobre.

Dez anos depois se encontraram numa festa de família.
O astronauta, um garoto igualmente entediado que repetira 3 vezes o ensino médio e via os amigos irem para a faculdade; e a garota esperta, trabalhadora, recepcionista em uma escola de natação e estudante de Biblioteconomia à noite.
Não tinham mais nada em comum.
Nem mesmo o quarto.
Ela o achava feio.
Ele achava que a prima era a garota mais linda do mundo.
Eles se separaram sem trocar uma palavra ao outro naquela noite.
Ele aprendeu a sufocar os desejos, os sonhos, e a conviver com a excruciante e sufocadora existência sem brilhantismo ou os amores violentos dos poetas suicidas.
Ela era grande demais para o pequeno. Viveu mais do que podia.
Aos vinte e nove anos, a garota esperta estava em um ônibus voltando das compras para o seu pequeno empreendimento de abrir um sebo quando um tiroteio na rua começou. Bala perdida, alojada no crânio, entrou pela têmpora esquerda, perda de massa encefálica.
Duraria horas. Hospital.
Ele não pôde ir ao enterro.
Fumou um cigarro. Chorou.
Pensou no quarto de lixo e todo o amor que não teve dela ou do mundo.
Virou as costas, pegou sua mochila e entrou em um ônibus para nunca mais voltar a essa cidade cheia de lixo, camisinhas e memórias imundas.
Jamais foi visto. Não importa o seu destino, não importa o que ele se tornou, não nos interessa se foi bem-sucedido na vida, se teve posses ou se teve muitas mulheres...
Ele saiu daquele quarto para sempre. Não era mais criança, não sabia mais como extrair beleza dos lugares feios.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

o horror cósmico extradimensional assola o terceiro mundo

Noite de 22 de setembro de 1992. Dez horas da noite. Campo minado da periferia.
Um despertar confuso. Vozes e sussurros difusos pelas esquinas sem lixeiras. Caos e cacofonia no blecaute paulistano,  aonde só ouvimos os gritos e cânticos que despertam o Alfa em ondas cerebrais minimamente calibradas para o retorno do eterno monstro que descansa nas profundezas.
Eis o nome entoado. Imemorial. Tevês quebradas, monitores com estática, o pulso eletromagnético das trevas reduz às migalhas todo o avanço tecnológico que o homem se vangloriava; meros passos confusos rumo à incompreensão da mortalidade: não há nenhum programa no ar, nem mesmo a trilha sonora  de músicas repetidas da novela ou do jornalista burguês vociferando contra a classe trabalhadora; e eu, um mero proletário, um funcionário de uma loja de departamentos que deixará um Mega Drive como herança, acompanho o fim derradeiro da humanidade pela janela da minha casa alugada, e é lindo: os enormes tentáculos descendo como uma horda de anjos enfurecidos e engolfando os prédios do conglomerado financeiro da Avenida Paulista,  rachando o Masp ao meio.
Não há resistência. Estamos encantados, ébrios com a ideia da destruição do conceito da humanidade e ansiamos pela nova concepção do renascimento cósmico.
Não ofereço resistência e me permito ao delírio. O grito da turba com raiva que esmigalha cérebros, ossos e patas é inimaginável. Estamos a um passo do último suspiro da  última criança nascida no parto do fim do mundo: grávidas que deixaram a sua prole no chão imundo e manchado da noite dos Antigos; riem da insanidade e tampouco se importam com o mínimo impulso moral ou o resquício do que chamávamos de “comportamento”. O recém-nascido e o horror da imagem refletida numa poça de um buraco que jamais foi tapado pela Prefeitura.
Mas já estávamos acostumados a isso. É o que a Luz dos Tentáculos nos transmite, traduz, converte aos que ousam ver:  uma visão tão clara que nos sentimos leves. Uma promessa tão intensa e tão sincera, que é quase como a promessa do Céu que não tivemos em nossas prestações eternas em 120 vezes pela moradia.
O último homem a morrer não se importou com nada. Nem mesmo com a honra de ser o último a cair no chão mal pavimentado do terceiro mundo onde tantos pereceram. Esse homem... sou eu.
Hoje, faço parte de algum lugar com barulhos de vento, poeira e a desolação das estrelas...