segunda-feira, 15 de julho de 2013

quarto vazio

Desceu as escadas. Suas mãos deslizavam pelos corredores sem tinta. O prédio era pequeno. BNH, aluguel razoável. Despreocupado. Mastigava chiclete. Pulava os lances da escada. Três pequenos andares. Logo, chegou ao destino. Mulecada brincando com cachorro. Pega-pega. Grades à sua volta. Gritaria estridente. O lixo ficava num quartinho cheio de moscas. Camisinhas no chão. Vassouras. Brincou que era um astronauta. No lixo do prédio, crateras. O espaço, imundícies. Desbravava. A prima veio atrás, curiosa. Ele era tímido. Ela era esperta e vivaz. Eram jovens. Eram crianças. Eram nada mais que vidas em contínuo e desesperado desenrolar de acontecimentos interessantes, povoados de dias longos e todas as situações insólitas e fascinantes que jamais viveriam novamente; eram duas crianças, filhos de pais que eram irmãos de sangue, que se odiavam secretamente e que praticavam o estranho  - e sagrado -  direito de crescer, trabalhar, odiar e ensinar a ingratidão e indiferença a seus filhos. Crianças. Eram filhos de pais separados, que eram irmãos, que não eram muito próximos e não deram as mãos no leito morte da mãe ou do pai; o pai de um deles era um bêbado, o outro era apático e frio. Eram pais que não tinham laços. O astronauta. A menina esperta. O lixo. O quarto.

Somente um fragmento perdido no tempo.
A prima nunca conseguiu brincar com o primo.
O astronauta preferia voos introspectivos e era pouco versado na arte da companhia.
A espertinha, com sardinhas e um gorro vermelho, era brilhante. E – estranhamente – era apaixonada pelo primo. Ambos com oito anos.
Só viram o beijo pelos atores da TV.
Só viram as pessoas pelas grades.
Assistiram, impassíveis, diversas reuniões de família sem perceberem o quanto eram indesejados no mundo.
Um quarto vazio cheio de lixo virava exploração.
Um garoto entediado, para ela,  era um amor retocado pela incompreensão e afeto juvenis.
Eram recortes, vidas que davam um tempo, sacolejavam entre dias estranhos e gritos sufocados nos telefones celulares dos pais; sobre risadas nervosas de bêbados em festas de família e, ocasionalmente, o afeto de estranhos que os amavam mais que tudo na vida. Mas eles jamais saberiam de tudo isso em um quarto do prédio cheio de lixo, sêmen, baratas pequenininhas e todas as revistas Veja recortadas e despejadas no lixo.
O astronauta.
A garota esperta, curiosa.
Naquele ano se separaram: um foi para o interior e outro para um bairro mais pobre.
Um era do interior.
O outro da periferia.
Escola boa, escola pobre.

Dez anos depois se encontraram numa festa de família.
O astronauta, um garoto igualmente entediado que repetira 3 vezes o ensino médio e via os amigos irem para a faculdade; e a garota esperta, trabalhadora, recepcionista em uma escola de natação e estudante de Biblioteconomia à noite.
Não tinham mais nada em comum.
Nem mesmo o quarto.
Ela o achava feio.
Ele achava que a prima era a garota mais linda do mundo.
Eles se separaram sem trocar uma palavra ao outro naquela noite.
Ele aprendeu a sufocar os desejos, os sonhos, e a conviver com a excruciante e sufocadora existência sem brilhantismo ou os amores violentos dos poetas suicidas.
Ela era grande demais para o pequeno. Viveu mais do que podia.
Aos vinte e nove anos, a garota esperta estava em um ônibus voltando das compras para o seu pequeno empreendimento de abrir um sebo quando um tiroteio na rua começou. Bala perdida, alojada no crânio, entrou pela têmpora esquerda, perda de massa encefálica.
Duraria horas. Hospital.
Ele não pôde ir ao enterro.
Fumou um cigarro. Chorou.
Pensou no quarto de lixo e todo o amor que não teve dela ou do mundo.
Virou as costas, pegou sua mochila e entrou em um ônibus para nunca mais voltar a essa cidade cheia de lixo, camisinhas e memórias imundas.
Jamais foi visto. Não importa o seu destino, não importa o que ele se tornou, não nos interessa se foi bem-sucedido na vida, se teve posses ou se teve muitas mulheres...
Ele saiu daquele quarto para sempre. Não era mais criança, não sabia mais como extrair beleza dos lugares feios.

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