sexta-feira, 28 de março de 2014

belmont em crise (II)

- E essa coisa de escrever, mano?
– É isso: só uma coisa.
– Certo... mas o que te leva a isso? “O que te motiva a escrever?”; essa foi a  minha pergunta, cara.
Virei a cerveja. O olhar para dentro do copo. O restinho.
– Cara, quem tinha de me dizer isso é você.
– Porra, como assim?! Você é o metido a escritor aqui nessa mesa!
– Eu não sou metido, parceiro. Eu sou “metidinho”...
Risada. Pausa.
– E você que me pergunta isso? E você?! O que você é nessa coisa toda?
– Ãhn ??
Mais uma. Garçom. Saideira.
– Você que é o leitor aqui. Você lê o que eu escrevo?
– Às vezes…
Deu risada. Resposta.
– Touché.
Copos erguidos. Velhos amigos.
Bebemos a última sem se preocupar com mais nada disso. Ele seguiu o caminho dele, e eu o meu. O Largo tava agitado, um monte de coisas acontecendo.
O ponto tava vazio. Eu tinha um latão de Itaipava na mochila. Beleza.
Chegou um muleque no ponto. Todo serião. Sacou um canetão da mochila. Mandou na estrutura de ferro do ponto de ônibus a seguinte frase:
“A gente só vive por causa da curiosidade”
E abaixo da frase, mandou um Tag todo estiloso. Muito foda.
E eu sorria, me sentia bem pra caralho por ter visto e lido tudo aquilo.

quinta-feira, 20 de março de 2014

belladonna

Lavou a mancha enorme com muito sabão e água da pia do banheiro.
– Deixa escorrer bastante água. Esfrega mais forte!
A mulher ficava na torcida; aflita, levantava as mãos em desespero, não suportava a sujeira tomando conta do tecido. Uma mancha de café, morosa, tomando o verde-claro da camisa. Um pensamento terrível para ela. O chão todo molhado, o tapetinho ridículo sob os pés do casal.
– Não foi nada, Bia. Tranquila, amor.
Olhou para esposa, sereno. Ela ajeitou os óculos.
– Eu… (soluço) sei lá … Eu não queria ...
Olhou para baixo.
O cara respirou fundo, de saco cheio.
– Sério, Bia?! É só uma mancha de café, porra! Não foi culpa sua, linda.
E a olhou com ternura.
– Na moral, esquece isso. De verdade.
Bia desabou a chorar e o cara a abraçou bem forte.


No dia seguinte ele não estava mais na cama. Levantou cedo e foi trabalhar na serralheria da esquina. Moravam há um ano e meio de aluguel nos fundos de uma casa velha, a proprietária era uma senhora meio burlesca, que parecia uma caricatura de dona de bordel de filmes de gangster.
“Ela só é exótica” - pensava Bia.
Sozinha em casa. Um terror cotidiano. Desatou o dia a andar pela sala sem parar. Parou. Fumou um cigarro. Começou a escrever no computador. Era redatora, fazia bico para um monte de publicações. Trabalhava em casa. “Um trabalho bom”, pensava. O foda era o marido na rua, doze horas esmerilhando as mãos -  e o orgulho -  em um monte de banquinhos sem graça e cavalinhos de brinquedo.
Um café. Só isso, era o que precisava naquela manhã.
“Não, melhor não…”
Lembrou da mancha. Do café na mesa. Cacos de xícara de porcelana no lixinho que ninguém sabia abrir da cozinha
Dia anterior. O marido chegara em casa mais cedo, depois do trabalho, exausto, sujo; ia tomar o café que estava na mesa. Ela viu o marido, tomou um susto. Terror; se aproximou rapidamente, deu um beijo nele e  - de um jeito desajeitado e violento -  esbarrou no braço que segurava o café. Derrubou tudo, café e xícara no chão. Porcelana, dragões, ninfas. Queimou de leve os dois. Disse ao marido que o café estava frio. A mancha, enorme. Um tumor. Metástase de cafeína. Os dois no banheiro. Que porra ...
"Não, deixa eu tomar um chá"
Lembrava. Não achou a camisa manchada. Vasculhou a casa toda. Por fim, desistiu. Quando foi jogar o modess no lixo, viu a camisa verde-claro e a enorme mancha entre papéis higiênicos de resfriado e merda.
Pegou um pedaço de papel higiênico limpo e a retirou do lixo.
Cheirava mal.
Ela chorou. Muito.
Jogou de novo a camisa no lixo. Deitou na cama, ligou no trabalho e disse que não poderia entregar o rascunho prometido, disse que tinha consulta marcada, algo assim. Acreditaram.
Queria dormir, não conseguia. Nove horas da manhã. Ainda. Dia lento, arrastado. Enxaqueca, cólica do caralho.
Procurou algo na caixa de remédios para amenizar a dor.Tomou uns remédios para insônia, legalizados. Deitou no sofá da sala.
Adormeceu vendo “I Love Lucy”. Preto e branco. P & B.
Acordou no hospital. Noite. O marido a olhava, desesperado.
Overdose, soro, lavagem estomacal.
– Tudo isso por uma camisa, Bia! Era só uma lembrança! Um treco, um presente... só isso! Porra, sua maluca do caralho!!!
Ela não disse nada, não esboçou nenhuma reação. Os médicos os deixaram a sós. Sabia que tava tudo acabado; aquele silêncio, cheiro de corredor, formol, que aquilo tudo era longe demais, mas não era bem o que tinha acontecido e seria difícil, impossível explicar. Só estava com uma dor de cabeça tremenda, melancólica, ansiosa e com sono. Tomou os remédios no desespero, ingenuidade, a cabeça explodia, só queria acordar mais tarde, quando o marido chegasse do trabalho… eram dias estranhos. Teve um sonho em preto e branco, só estava exausta.
Mas ninguém entenderia isso. Era uma maluquice plausível, e tava tudo bem claro: ela era uma maluca superprotetora, com baixa autoestima e que chora por manchas de café numa camisa que deu de presente para o marido no dia mais importante de sua vida. É, era bem compreensível: se ela fosse o marido, daria o mesmo entendimento a tudo. “Foda-se, mais um para a lista”
Ficou sozinha. Ele foi embora. 
Ela sorriu, pois era tudo uma leve ironia, sutil e brilhante: a mancha de café, o dia anterior à mancha: ela sentada na mesa olhando para o café (que seria derramado) durante horas, a enxaqueca...
O casamento acabou. 5 anos. Tudo por causa de uma mancha de café na camisa e uma sensibilidade fudida e ridícula; foi aconselhada a fazer sessões de terapia. Um ano depois já estava namorando, indo para a academia, fazia Muay Thai de manhã, trabalhava em transcrições de textos para braile à tarde, morava no Centro e se recuperava de uma cirurgia na córnea que deveria ter feito há muito tempo.
Fez o que deu vontade, tudo que estava em listas e agendas, em promessas de ano novo, o que tinha acumulado; e podia se dizer que toda aquela merda do ventilador ficara para trás. Não queria morar com o novo namorado, a verdade é que se davam bem distantes um do outro. Se amavam.
Tudo isso por causa de uma mancha de café.
Um café que continha veneno e estava na mesa...

sexta-feira, 14 de março de 2014

último dia em roma

Desciam as ruelas sinuosas. Despreocupados, chapados de vinho. Um grito.
– Fogo, fogo! Corram, salvem suas vidas, irmãos!!
Os dois correram. O fogo entranhava o horizonte distante em matizes cinzas e laranjas. Chamas impetuosas erguiam aos céus. Casas pobres, de madeira, de tijolos; ruíam em segundos com baques violentos. Longe do caos da morte e gritaria, choraram juntos e apoiados um no ombro do outro. Contemplavam o apocalipse.
– Aonde vamos agora?! Aonde vais, irmão?!
Os dois olharam para baixo.
Um plebeu surgiu entre os amigos. Corria. Resfolegava, sofria. Gritou aos amigos, pedindo ajuda. Esfumaçado, queimado e parcialmente deformado.
– Foram os cristãos! Morte aos cristãos!
Os dois se entreolharam. A enorme bola de fogo engolia a cidade.
– Assassinos!
O homem queimado chorou de dor, desolação. Cansou do choro.
Os dois continuaram as andanças. Não tinham familiares: os pais morreram cedo e eram amigos de infância.
O mais jovem disse ao homem queimado:
– Tens família, irmão?
O homem chorava...
– Não! Não tenho ninguém! Ninguém!! Estou perdido nesse mundo no último dia dessa cidade!!
Os dois olharam o pobre coitado.
– Tens a nós, amigo. As coisas ficarão feias nessas ruínas. Vamos embora. Essas enormes edificações, essa cidade… tudo aqui não foi feito da noite para o dia, mas, veja… como as ruínas em chamas cedem em questão de segundos…
Os três olharam as ruínas. Extasiados. Horas e horas.
– Ao inferno com os romanos e os cristãos. Provavelmente isso continuará por anos … Jesus está morto e o Imperador sorri do alto do cume lá longe na única edificação intacta! Vês? Estamos sozinhos, os três... distantes do calor, mas como é bela a pintura...
Fogo. Labaredas. Inferno. Carne.
Viajavam às cidades e contemplavam homens decapitados e esquartejados pelas estradas. Doentes de malária. Eram chamados de criminosos. O legado do fogo era imortal.
Admirando as chamas, os três frequentaram diversos vilarejos e atearam fogo nos lugares mais inóspitos e pobres durantes duas décadas. O fogo consumia tudo. Somente os imponentes prédios permaneciam.
Iniciaram um culto. Orgulhavam-se de seus feitos. Ganharam adeptos.
Os primeiros amantes do fogo, os incendiários e piromaníacos, nasceram dessa comunhão dos três homens sem família e nada a perder. Pelo poder da chama, eis a extensão da irmandade. Cidades e vidas consumidas até o fim dos tempos.

quinta-feira, 6 de março de 2014

manual de robótica sexual

Costumavam dormir abraçados. Beijos e carícias. Tesão na hora certa e beijos trágicos entre despedidas calculadas diariamente. A mulher se foi. Trabalho. Escritório.
Uma hora depois.
O homem metálico batia à porta.
-Ela se foi. Podemos começar?
Ele, o homem, introduzia o pau duro em três orifícios metálicos, revezando com intensidade as estocadas. O outro, o homem metálico, aguentava tudo, impassível. Observava a sessão  de sexo com devassidão (artificial e programada minuciosamente), em um misto de tédio e olhar científico para os fatos empíricos. Armazenava todos os dados, analisava e se adequava às preferências do seu cliente com uma obsessão monomaníaca de androide.
Os dois se comiam depois, mas o homem sofria mais na alternância. Sempre pedia mais. Essa rotina era revivida nas manhãs de terça, quarta e sexta; eram dias que o homem entrava no expediente mais tarde.
Uma bela manhã de putaria depois – e carícias trocadas na cama -, o homem resolveu desanuviar algo:
-Acha que eu sou viado?!
Pergunta idiota, casual; mas jogada, propositalmente, com insistência e curiosidade pelo homem. A questão pairava e flutuava, entre baforadas de cigarro na cara do homem metálico. Por fim, o homem metálico disse:
-O senhor quer dizer “homossexual”?
O homem baforou com violência na cara do androide.
-Viado, VI- A- DO: homossexual. Cacete, eu pago uma milha para ninguém te programar direito; só sabe foder direito, bicho burro do caralho... SIM, sim! Homossexual, porra!!
Deu uma porrada no androide:
– ACHA QUE EU SOU HOMOSSEXUAL, seu balde de porra de metal!!!
O androide assentiu, sem esboçar nenhum abalo:
-Ok, pergunta confirmada. Deseja uma margem de porcentagem para a classificação proposta, Senhor?! De modo a tornar a ... O homem o interrompeu com um tom de voz alto; visivelmente transtornado de cólera com a objetividade do androide.
-Deixa eu ver ...
(pausa, 2 segundos)
– Dãããããnn, SIM, seu filho de uma puta, por favor, pooooorrrraaaa! Gritou. Silêncio.
– Afirmativo. Um momento, Senhor.
Os olhos cibernéticos piscaram entre flashes azuis e verdes numa velocidade convulsiva. O pequeno espetáculo iluminou o quarto por um tempo. Por fim, o androide anunciou o resultado.
– Você está configurado como “Homossexual” em 100%, de acordo com o programa “Sexuality”, Senhor.
Silêncio. 5 segundos.
O homem meneava a cabeça, incomodado, fumava com calma. Por fim, balançou a cabeça em negação e proferiu a sentença lentamente, com raiva e asco.
- Que piada… Sim, mas eu como buceta, como o cu dela todos os dias... Minha mulher dá para mim todos os dias e eu como mulher! Eu só namorei mulher, casei e o caralho!! Como pode isso?! Eu, viado?!! Que mistério é esse? Como eu posso ser bicha comendo mulher, caralho !!?
Começou a gritar.
- Seu rabo besuntado de óleo Radial não é o único na minha preferência!! Eu sou macho, porra!! Seu filho da puta! Como ousa, caralho?! Que merda de programação é essa?
Levantou da cama. Jogou, com violência, um pesado travesseiro de penas de ganso no homem metálico. As iniciais da mulher estavam bordadas no travesseiro caro, dado como presente de namoro há um ano.
-Eu vou te desligar, seu merda. Tá vendo isso aqui? Chega!!
Era um cartão de plástico com o nome dele escrito.
-Isso aqui vai te mandar embora. Agorinha. Quer ver?!
Passou o cartão no computador portátil de pulso. Acionou o comando de voz, aproximando o braço com o terminal implantado:
-Cancelar a assinatura do “Pau de Ouro”.
O homem metálico o olhava com uma inexpressividade tocante de androide. "Blip". Sinal de confirmação, a mensagem era visualizada pelo terminal neural e exibida no braço: assinatura "Pau de Ouro" foi cancelada com sucesso!
-Agora vai! Passa daqui, sua bicha do caralho!!
Ele foi. O androide do sexo levantou-se lentamente. Parou na soleira na porta. O sol da manhã reluzia o quarto inteiro. O reflexo do sol no metal projetava linhas difusas e cegantes no corpo da máquina.
-Vai embora, sua putinha. Xispa!
Ele ficou ali, parado na soleira porta. Nem olhou para trás:
-Acha que pode haver um defeito na minha programação, Senhor? Baseado em um acurado sistema, nós ...
O homem o olhava. Na bunda, mas olhava.
-Ãhn?! Cala a boca, porra!! Vai embora, viadinho do rabo de ferro: acabei de cancelar a sua assinatura, caralho! Tem uma cláusula especial que diz, especificamente, que posso atirar na sua bunda agora se eu quiser. Eu tenho um belo modelo de BFG-9000 aqui comigo, louco para atirar uma azeitona nuclear nas suas pregas “homossexuais”, surfista platinada!
O homem metálico continuou a andar. Não olhou para trás.
À noite, a mulher chegava. Os dois treparam.
Boquete. Gozada. Uns abraços e apertadas fortes; nada demais: era só mais uma trepada, “uma regularidade nos contratos”, pensava alguém nessa relação. Às vezes, os dois chegavam a essa conclusão mutuamente.
O homem levantava da cama nas madrugadas. No meio da noite, com o pinto meio sujo de porra, dava voltas pela casa. Sorrateiramente, quando a mulher dormia, ia para o canto da cama; lá, acessava seu computador neural e via sites pornográficos; e assistia, basicamente, a diversos vídeos de transsexuais cibernéticos, homens fodendo homens no cu, etc; tudo com toda a força motriz de uma broca de potência gigawática do velho século XXIX.
Batia umas punhetas até de manhã. A mulher saía para trabalhar, enquanto ele sentia um misto de vazio e alívio no coração.
“Preciso daquele pau. Preciso” Voz da razão.
“Não, não posso”
Relutava. Dias e noites de andanças sorumbáticas. O carro sempre optava, na volta para casa, pelo trajeto nas avenidas mais mal frequentadas. 
Mas…Uma bela manhã de sexta-feira:
“Preciso! Muito!!” - gritou o homem, aproximando o cartão do terminal. Fez alguns procedimentos no pedido.
Vinte minutos depois o homem metálico voltara; o homem deu um beijo maravilhoso na boca do homem metálico. Foi foda. Pediu que, imediatamente, alterasse o tamanho do seu pau-broca para um metro. O androide o fez, sem titubear.
Gritos, gozadas, carícias depois.
-Acha ainda que eu sou viado, sua máquina suja e gostosa?!
Questionava ao androide o homem todo contente, cheio de porra artificial química na cara e extasiado com o desempenho da máquina.
-Hein?!
Gritou sadicamente:
- Fala, seu filho da puta!! Fala agora!!
O homem metálico não dizia nada. Silêncio. Só projetou uma mensagem holográfica no ar com as letras em fonte Book Antiqua em alta resolução:
“Esse androide não possui mais o programa de classificação de preferências sexuais, “Sexuality”; pedimos desculpas, e ressaltamos que essa unidade não pode ser mais reprogramada, ou questionada, sobre assuntos relacionados à classificação de sexualidade de terceiros”
O homem sorria, sorria, sorria…
… tamanha, e descomunal, era a sua felicidade.