sexta-feira, 24 de agosto de 2007

ozu-sanma no anji(1962)


Esse filme de Ozu é de uma beleza alcóolica inebriante: cervejas, copos, sakê e a sua vida sobre risadas de canto de boca quase tristes, o olhar para o fundo do copo e idas e vindas nos bares e casas de amigos; a rotina que definitivamente tem o seu encanto nesse filme de Ozu.
Ao sentar na cadeira do Centro Cultural e ver cores na tela é um coisa curiosa e quase que chocante após todos esses dias vendo os clássicos em duas, três sessões uma após a outra.Você pensa: "tomara que não seja um filme ruim de Ozu" porque você associa o preto e branco a tudo de bom desses mestres orientais, chega até a pensar que não deve ver mais filmes coloridos e que chegando na locadora a primeira coisa que irá fazer será rever "O Sabotador",na minha opinião um dos melhores filmes de Hitchcock...
E lá está Ozu em seu último filme em vida: morreria um ano depois depois de realizar esse seu " A rotina tem seu encanto" retratando os primeiros passos da gigante Tokyo em seu momento-feto regado aos neons (tímidos) apocalípticos que iriam inspirar o estilo do futuro-cyberpunk visto em "Blade Runner.
É o pós-guerra retratado de uma forma natural e cotidiana pela lente de Ozu no seu estilo inconfundível; tanto que após ver os filmes desse cineastas tão distintos você já sabe quem é Ozu ou Mizoguchi só pelas imagens iniciais.
Hinayama (Chisu Ryu, preferido de Ozu) é um velho viúvo pai de três filhos e ex-militar que leva uma vida aparentemente tranquila com os filhos mais novos: a sua filha Michiko está com 24 anos e cuida do irmão mais novo e do pai.
Uma reunião com velhos amigos de colégio irá colocar Hinayama em contato com muitas coisas alheias a ele: idas e vindas regadas a muito sakê lhe fazem reencontrar o velho professor da turma o famoso"Cabaça", um velho triste que agora vive de fazer noodle em sua humilde casa; os velhos companheiros se sentem mal por ver o velho mestre numa situação tão desconfortável depois da guerra e passam a chamá-lo para as bebedeiras quase que diárias.
Hinayama anda por aí...
Encontra pelos bares um velho conhecido de guerra que o apresenta a um bar estranho que coloca marchinhas militares a pedido dele, os dois se sentam no balcão e conversam sobre um mundo esquecido e doloroso para a história japonesa de uma forma divertida e angustiada.Tem uma cena maravilhosa onde os dois enchendo o caneco ponderam porque o Japão perdeu e o amigo de Hinayama diz :
-Estamos aqui bebendo whisky e tomando coisas que eles tomam ...E se o Japão ganhasse ?Estariam lá as americanas: usando perucas, mascando chiclete e tocando shamisen pelas ruas de NY...
Hinayama pára e diz :
-Bem, então foi melhor termos perdido mesmo!
E os dois riem .O cinema hollywoodiano jamais trataria uma tragédia como essa de uma forma tão descontraída e realista.Ainda mais depois de tão pouco tempo o Japão ter levado uma bomba atômica na cara, depois de serem escurraçados do Vietnam o cinema deles se ocupou em criar heróis em resgates sensacionais dessa guerra como se nada tivesse acontecido...
Vendo a vida de seu velho professor que numa noite triste de bebedeira lhe confessa que o pior arrependimento de sua vida foi ter tolerado a filha cuidando dele e abdicando da própria vida, Hinayama começa a entrar em crise e que talvez se torne um "Cabaça" se as coisas se acomodarem.O tema do casamento é uma constante em filmes de Ozu como o lindo "Pai e filha ", mas aqui ele não é carregado pela ótica do drama da filha e sim a do pai que entra numa crise existencial.
Existem sequências realmente hilárias e brilhantes e duas em particular mexeram comigo e o público (que compareceu em massa, eu achei demais a comunidade japonesa velhinha ter prestigiado):
-Num bar, Hinayama e seu amigo Shuzo Kawai bebem despreocupadamente quando a atendente pergunta onde está o outro amigo e sua jovem e recém esposa: durante o filme todo os dois tiram um sarro dele porque ele um dia vai morrer de trepar para dar conta do recado com uma mulher tão nova e exigente e que vive de "coleira curta" (o que meus amigos há um tempão atrás chamavam carinhosamente de "pussy control.) e bem, eles respondem para a atendente que estavam discutindo os detalhes do enterro!Que o amigo tinha batido as botas devido ao "trabalho duro"!E a mulher pergunta o porque !E começa a acreditar!Genial.
-Koichi, o filho mais velho de Hinayama tem um amigo,Miura, que quer lhe vender uns tacos usados.Um dia quando o pai descobre que Michiko nutre uma paixão secreta por Miura e lhe conta que o moço já estava comprometido mas que havia tentado arranjar um casamento para ela, a filha responde numa cena tocante diz "Pai, fico contente que você tenha perguntado para ele ."Hinayama pergunta se não estava triste: ela diz que não e sai sorrindo, o pai e o filho comemoram que ela tenha levado na boa.E logo em sequência desce o filho mais novo dizendo"Que aconteceu com ela?Porque tá lá em cima se despencando em lágrimas!"
Esse filme de Ozu se permite a um texto mais descontraído mas não se trata de uma comédia declarada: enquanto Hinayama vai descobrindo a verdade sobre o desapego e que quer um futuro bom para a sua filha antes que seja tarde, através de copos em lugares estranhos a gente que assiste vai descobrindo o que há por trás dessa rotina que parece que tudo está bem.E não se trata de um filme moralista sobre álcoolatras com lições bestas sobre os excessos, é sobre o desapego revelado através deles.O álcool profético.
É o que a gente vê em fundos de copos de cerveja pelos bares da cidade...
Hinayama olhando para o quarto da filha: cabides, ármários vazios.Solidão.Nenhuma palavra ou legenda: tudo traduzido pela lente de Ozu.
Depois de ver tanto sakê me deu vontade de tomar um e como já era tarde não dava para passar na Liberdade: passei no supermercado companheiro que me forneceu latões de Skol por 1,49 todos esses dias na volta para casa e procurei; encontrei uma linda garrafa de sakê com fotos de árvores de sakura na embalagem por 35 reais....
Melhor esperar a Liberdade.
Espere a primavera, Belmont...
Embriagado por Ozu: puta porre bom da porra.

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