quinta-feira, 30 de agosto de 2007

sunday morning coming down

Meu tio morreu no bar.Era domingo e ele tinha ido ver os compadres e tomar uma cervejinha de manhã.Tinha um time de várzea que ele gostava de ver enquanto o mundo todo tava na missa, mas eu não sei se o time ia jogar naquela manhã em que ele morreu.Gostaria de perguntar para ele.Ele bebia tranquilo .
Meu tio Tonhão, ele era foda...
Eu e ele protagonizamos uma viagem para Mongaguá que estará impressa na minha memória para sempre, aquela foi a minha road-trip que me definiu como homem e as nossas conversas sobre mulheres serão inesquecíveis.
Ele sempre ligava em casa e quando eu pegava o telefone era impossível não reconhecer sua voz grave (uma voz muito foda, era o nosso Johnny Cash) e aquele tom" E o nosso Parmera?" era inconfundível: quando entrei no Segundo Grau minha voz começou a ficar bem grossa e eu gostei quando uma menina me perguntou na escadaria do Alves se eu tinha bronquite e porque falava tão grave, se a minha voz já era grossa eu imaginava que ela ficaria igual a voz do meu Tio Tonho, sentia que estava no caminho...
Acho que eu era só um adolescente e todos mudavam suas vozes, menina.
Uma vez ele passou em casa depois do trabalho como taxista e foi uma tarde tomar chá com a gente lá na Vila.Que saudade de você, tio.Fazia sol naquele dia e eu me lembro do reflexo que batia no chão da sala pela janela, da gente assistindo aquela tevê enorme de antiga que minha mãe ganhou de uma patroa com a imagem embaçada pelo sol e a sua expressão era a de um homem que fazia tudo na vida pelo tesão e jamais mudaria; eu não tive muitas figuras masculinas paternas e fui crescendo como aquele pão caseiro que a gente faz em casa e nunca fica do tamanho e forma que a gente quer (sai todo torto e imperfeito), não tive isso na adolescência , mas tive o senhor, mesmo que ausente às vezes para me inspirar e escrevendo essa porra começo a chorar pensando que sempre ninguém acreditou no senhor, que era tido com um gauche que vivia flanando em empregos e andanças para lugares que ninguém sabia e eu que fazia e ainda faço o mesmo, não tenho vergonha de também o ser; o senhor foi uma das poucas pessoas livres que conheci na minha vida e eu gostaria de ser livre um dia como você foi .O senhor era incorruptível e uma vez me disseram que eu também era...
Ele era livre.
Quando eu era pequeno encontrei num velho armário um monte de recortes de jornais: eu estava procurando um jornalzinho que tinha uma matéria minha quando ganhei um prêmio por uma pintura sobre o trânsito, desenhei um semáforozinho tosco com as cores verde, vermelho a amarelo certinhas e um guardinha.Incrivelmente foi o segundo melhor desenho que fiz na minha vida e ganhei uma coisa por ele (sei lá o que era...) tamanha era a ocasião especial e incomum.
Fuçando aquele monte de jornais amarelos e mofados encontrei tantas coisas e até então a minha favorita era a história de um crime (eu era um muleque fudido obcecado com histórias e filmes de crimes; não mudou muito...), tinha um recorte de um cara que era um irmão de um traficante das antigas chamado Bonecão, foi assassinado com dezenas de facadas perto do bar que a minha vó tinha (ducaralho pensar que morei praticamente num boteco) em frente em casa .Eu sabia essa estória decor e acumulei muitos detalhes.
Mexendo nos recortes policiais que eu adorava, encontrei um em particular meio escondido, enfiado em baixo do papel do forro .
-Mãe quem é esse cara que tá preso?
E minha mãe me falou com muita pausa naquele tom que a gente encontra às vezes na vida e separam o que é mundo e o que é inocência, como aqueles separadores de livros enormes e verdes que tinham na velha biblioteca que eu flanava minhas tardes que ninguém sabia onde eu estava.O meu momento Kodak.
Meu tio pegou cana sim e a bronca dele eu não vou falar, tampouco vem ao caso.Ninguém sabe o que é ser enjaulado e ter sua jega até estar lá, fácil é dizer que todo mundo lá não presta e deve ser queimado e exterminado enquanto você pega um busão cheio de gente igual a você e se ilude que tem uma vida digna, assiste o Datena na sua tevê antiga e tem a consciência de que as pessoas do busão são diferentes de você; sim seja o contente dessa sociedade fudida que quer o seu consentimento para enfiar uma trave de futebol inteira no seu cu ao som de carnaval, imagens de Carmen Miranda e (ah!) uma faixa para você colocar no peito em verde e amarelo "Sou brasileiro e não desisto nunca".
Nelsão já dizia: "toda unanimidade é burrra".Meu tio gostava dele.
Na cadeia tem gente ruim e gente boa, tem de inocente a sangue ruim filho-da-puta que se orgulha do que fez , tem aqueles que pedem licença ao entrar na casa nova e aqueles "coitados" que roubam para comer com vergonha de entrar e medo na primeira noite, outros estupram e matam crianças, outros são estuprados lá mesmo, tem velho e muleque: os piores e os melhores num mundo em miniatura e grades .No busão também tem, no meu trampo, na sua faculdade, ao seu lado, nos motéis e em casas que imprimem papéis.Só que eles não estão presos.Serão um dia , talvez não...
Meu tio foi uma das melhores almas que já viveram.
Quando eu tinha 15 anos queria ficar longe de uma desgraça que aconteceu comigo e implorei que queria ir para Mongaguá e ver um lugar diferente na minha vida (foi a primeira vez que cresci), e ele estava comigo, andamos tanto pelas ruas a flanarmos juntos como Che e Granado em nossas motos fudidas de chinelo nessa road trip dos meus quinze anos, era o meu baile de formatura; vimos o senhor Manfrini que morria lentamente com câncer a contar suas estórias impressionantes de boxe e a jovem filha bonita dele que me olhava de vez em quando por essas tardes; lembro daquelas cervejas em casa embaixo da pia com as tampas enferrujadas e minha vó disse que elas tinham vencido e ele sacou essa:
-Mãe, cerveja não estraga não!Onde já se viu dizer que cerveja tem prazo de validade!!
E bebemos a nossa cerveja com um certo gosto metálico e delicioso.
A semana passada fez um ano que ele faleceu: exatamente dois anos após a minha tia Áurea também se despedir do mundo (falo dela um outro dia).Minha prima Tati (filha dela) que me encontrava num enterro a segunda vez seguida me disse:
-É, parece que a gente só vai se se ver agora nesse lugar...
Eu a abracei forte e não consegui falar nada.A mãe, o pai dela e o tio se foram.Mesmo cemitério.
Meu tio lá no caixão...
Eu segurei as suas mão frias e disse uma coisa em seus ouvidos.
Carreguei o seu caixão.Carreguei o da minha tia também e carregarei o de quem for importante na minha vida: ninguém pode me roubar o amor e respeito que tenho pelas pessoas que me inspiram nessa porra de vida, é a única coisa que não depende de empregador, carimbos ou protocolos, mesmo que isso seja unilateral.Carrego caixões.Bebo em nome deles e delas no boteco da esquina e levanto o copo em reconhecimento.Faço um toast silencioso.Tardes e noites que ninguém sabe para onde vou.
E lá se foi o meu tio enterrado no chão de covas abertas a céu aberto na terra marrom umas ao lado das outras, sem mármore ou criptas memoráveis: só uma plaquinha com o seu nome para não rezarem ou cuspirem pro corpo errado sob o vento de um quase meio-dia estranho.Cachorros dormiam no cemitério com as cabeças nas guias como travesseiros, eles pareciam tão tranquilos ...
Esses dias o meu pai me disse que teria acompanhar a exumação do corpo da minha tia para colocarem os ossos em gavetas do cemitério.O mesmo cemitério, pois as covas no chão são quase ocupadas diariamente e tem que se ceder lugar para outros.Minha mãe disse:
-Ai, credo!Deus me livre!
No carro ele me disse:
-Arthur, é uma coisa que todos pensam que é horrível, mas queria te dizer que todo mundo devia fazer.
Lançou essas palavras pelo ar e eu o olhei para ver o que queria dizer, como eu devia ter feito um dia quando era criança e não entendia.Olhar curioso de quem saber as coisas estranhas do mundo e ser fudido.Ele explicou:
-Eu fui na exumação do meu pai.E no meio daquele fedor do caralho, um monte de ossos e trapos eu vi que o meu pai não era aquele monte de sujeira: eu sabia que meu pai não era aquilo.
Eu balancei a cabeça.
É...
Meu tio sabia que meu pai um dia voltaria para ter esses papos que ninguém quer ter comigo hoje.
Ele era um membro do Clã Petrone, pai da Magali: negra mais linda do mundo, um palmeirense doente e apaixonado, um amante que sabia tanto de mulheres e o mundo da dor, viveu sozinho como quis e viu mais coisas do que devia e colecionava revistas relacionadas a assuntos variados de política, samba, futebol desde os anos 50, tinha quase todas as revistas da extinta revista Manchete.Eu herdei a sua coleção e para qualquer um pode ser um monte de revistas velhas guardadas num plástico em meu armário com mais filmes e livros que roupas, mas para mim é ele :meu tio Tonhão.
Esse que como Johnny Cash andou numa calçada de domingo de manhã para o Bar, que ia pegar mais uma cerveja para a sobremesa e se foi.Os amigos gritavam emocionados para a sua cova, faziam confissões "Antônio se foi ...meu amigo !E a nossa cerveja? eu vou tomar, fica tranquilo".
Eu te amo, tio: o senhor era incorruptível.

" On a Sunday morning sidewalk,
I'm wishing, Lord, that I was stoned.
'Cause there's something in a Sunday
That makes a body feel alone.
And there's nothing short a' dying
That's half as lonesome as the sound
Of the sleeping city sidewalk
And Sunday morning coming down."

-Pai, quando você verá os ossos?Eu vou também, é nóis...

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