quinta-feira, 6 de novembro de 2014

a pungência da violência

Quem pensaria que os moleques, aqueles merdinhas que viviam aporrinhando os mais velhos com sua inconsequência adolescente, aparentemente inofensivos naqueles dias, andando pelas ruas chutando latas e cantando hinos do Chelsea ou Arsenal, estariam-  neste momento -  atormentando os pensamentos de gente viva? Quem?
Até por quê... eles estavam mortos. O problema, o foda, era saber de tudo isso.
Em algum canto, em algum pequeno lugar de desamparo etílico, um homem lamentava por pequenas almas de ódio num refúgio bem particular. Ódio puro. Na verdade, eles não eram mais garotos – Keef e os outros – eram uma massa de pensamento e violência extrema que compraram essa merda toda de Skrewdriver e Tory. Inocência, sim, era o velho à minha frente virando um pint de Guinness, a julgar que aqueles pequenos merdinhas cheios de suásticas estavam em paz em algum tipo de céu buscando redenção num lugar colorido.
A imagem do banheiro. A amálgama distorcida do ódio com suas tatuagens... Marv continuou, perdido entre algo com as palavras amargas:
-John, a verdade é que eu vi essa molecada aqui, crescendo com a gente. Foi um erro meu não deduzir que, debaixo do meu nariz, eu estava consentindo com tudo isso. Eu, aqui, sentado na varanda, nesse bar, dizendo a toda hora para aqueles porrinhas “gente, peguem leve”, “ei, os garotos da East End estão espertos”. Eu, vibrando com toda essa coisa nossa de pegar nas bandeiras e entoar hinos, estava – na verdade – incitando os moleques a essa pungência da violência? Essa necessidade que nem eu sei o que era há dez, vinte, trinta anos atrás?!
-Não se culpe, Marv. Gostei da “pungência da violência”...
Silêncio. Constrangedor.
-Estou velho, John. Tenho filhos, tô no seguro-desemprego e vulnerável. Me permito a alguma porra de sentimento e introspecção de vez em quando, sabe?!
Eu sorri. Ele retribuiu.
-Eu te odeio, John. Eu pago essa. Vá embora e me deixe em paz.
-Se cuida, Marv. A noite é breve.
Larguei o pobre diabo com seus pensamentos perdidos. Londres ansiava por um pouco de gente sem rumo por entre as calçadas e, prontamente, eu atendi a desgraçada sem titubear. Se o velho Marv soubesse que Nergal usou na mulecada somente aquela “pungência da violência” que ele mesmo citou – com propriedade – para transformá-los numa massa profana de ódio cego...
Há um velho axioma mágico que diz, basicamente, que só reavivar e verbalizar um pensamento traz à tona a força da magia quando ela é proferida ou enunciada. O Marv, velho hooligan, naquele momento exaltava, fortalecia o puto do Nergal com o seu tributo à violência. Cumprimentava o merda lembrando das suas vítimas. Melhor ele não saber de nada, John. Melhor era você não saber de nada. Mortos demais nessa merda toda.
Meio tarde, John. Devia ter pensando nisso antes de todos os círculos  mágicos, adagas e rituais...
Como dormir debaixo de todo esse barulho?
Dei uma apressada. Zed me esperava toda faceira no metrô. Me acendeu um cigarro e colocou na boca. Aquele sorriso me trouxe de volta de algum recôndito sujo que parecia aprisionado. Tente isso, amigo; tente fugir dos lugares inóspitos com o sorriso de uma mulher linda.
Afinal, uma coisa ou outra eu tinha que aprender entre umas voltas pelo inferno ou uma treta com esses putos e seus tridentes e cachorrões, não?!
Ela me beijou nos lábios.
-John, posso ir para o seu apartamento hoje?
Ela sorria. Nossa intimidade. Nossas piadas internas.
-Baby, eu tenho medo que você se apaixone por mim. Sou um homem muito requisitado.
Ela sorria, sarcástica.
-John Constantine, você é um pobre desgraçado que vaga por essa cidade trombando desgraçados que querem apagar você ou a sua família: arrume um trabalho, porra!
O dia estava cheio de sentimentos e sutilezas.
Fomos para o meu apartamento. Mofo e sujeira; vinte e cinco dias trancado desde a última ida aos pântanos: convidativo até demais.
-Não me importo com nada disso. Você é autêntico.
Ela que dizia isso vendo a sujeira da minha vida. Eu não falava nada. Só segurava a cintura dela. Com força.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

cabeça de vaca


“Misericordiosíssímo carneiro

Esquartejado, a maldição de Pio

Décimo caia em teu algoz sombrio

E em todo aquele que for seu herdeiro!”


Augusto dos Anjos – A Um Carneiro Morto
Volta e meia, dá meia volta.
A cabeça de boi, de vaca (sei lá) me observa na encruzilhada da Raposo, de gente que sobe a pé para o metrô, de gente que desce, que vai para o Morro do Querosene ou Além-Gotham desse lado da ponte; que vai atrás de uma glória ou guerra, de cachaça ou labuta; de correria ou paixão... A cabeça de Vaca, de Boi, enorme, com olhos serenos que não apodrecem,  com uma ternura pestilenta que desarmaria o seu assassino – com o facão que a decapitou em um corte tão perfeito e uniforme -, a tranquilidade na morte da vaca.
Ela, cabeça, de vaca, permanece ali e nunca mais apodrecerá. Miasma bovino. Os abutres que perscrutam os céus do Butantã vagam ali e só conseguiram mordiscar os seus olhos; não ousam bicar a cabeça que, “impútrida”, nem de longe é obscena.
A cabeça de vaca, fétida, olhando para o céu; a cabeça de vaca é uma oferenda e jamais pensei que algo poderia ser extraído desse animal, ele lá, naquelas pastagens (nada verdes), numa bucólica estrada de terra, atropelado. Viveu, mas logo algum cowboy com alma de mercenário sensível de faroeste das antigas deu a paz para ela numa bala; a vaca, assim, foi escolhida para abençoar algo. A cabeça de vaca. Facão. Oferenda.
A cabeça de vaca foi feita para mim.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

o maníaco do ácido ataca novamente


Dia de Feira da Vila. Ela vai tá lá. Ela e as amigas. Ela que anda de bermuda preta, camisa azul em viagem de escola nas férias. Ela senta na minha frente, duas carteiras, gosta de Pet Shop Boys. Beberemos Coca-Cola. Mãe dá dinheiro pro pastel. Tem barulho na esquina da Wizard, rock. Ninguém Dorme. Eu não vejo ninguém que conheço. Eu quero ver ela. Não, nem sinal. A vida é escrota. O mundo tá perdido. Acho que vou para casa assistir Gigantes do Ring, um Trapalhões, sei lá. Nem deu para tomar um refri. Tá de noite. Tá passando o Fantástico. A mãe tá com aquele merda lá em casa. Vou ficar por aqui mesmo até que ele suma das nossas vidas… ou quem sabe, volto, sei lá. Nem sei de mais nada.

Cheio de gente aqui. Nem dá para andar. O que eu tô fazendo aqui? As pessoas andam tão grudadas umas nas outras, sem espaço pra respirar. Aquela vagabunda me paga. Mato ela e aquele viado, enforco, jogo óleo quente nos dois na cama. A pele gruda, o pau e a buceta rasgam colados um no outro. Dezenove anos, “até que a morte nos separe”... O mundo é podre, essa cama é suja e essas mulheres aqui dessa feira de merda são todas impuras. Tocar o terror nessa porra hoje, tomar uns gorós e dormir na rua. Hoje começo a viver. Se algum maluco tirar uma, meto o canivete no pau do filho da puta e rasgo. Mato essas putas, mato todo mundo nessa porra.


Deus, meu Senhor. Deus, Senhor, livrai-me do mal; eis o meu único pedido. Janinha tá criada, Marta também, eu não fiz nada de errado. Não, Senhor; não, eu dediquei minha vida toda à sua obra, Senhor. O Senhor é mais forte que tudo, que toda multidão, que todo esse barulho, que toda essa perdição, que toda essa gente perdida no mundão. O que eu fiz não foi errado, meu Deus-Todo-Poderoso, não foi … não pode ser errado, não, Senhor ...


Será que aquele corno tá aqui? Andando de mão dada com essas vagabundas? Será? Eu odeio esse lugar, nunca quis morar nessa merda de cidade. Sozinha, com nenê em casa, sozinha, aqui, procurando um maldito dum bebum fedido, corno, deformado, imbecil… aonde a minha vida se perdeu?! Aonde ... Com nenê sozinha, dormindo sem fim naquela cama com cobertorzinho perfumado… eu vou fugir daqui agora, dessa feira de merda … sumir… se ele der sorte, se voltar para casa e achar a nenê, tudo certo, Deus agirá, se não … não era para ser … eu só tô cansada agora, acho que vou desmaiar aqui nesse mundaréu de lixo de gente suja. O bebê não chora mais assim .


Vou ali. Só preciso mijar um pouco. Aguento mais um monte de dose. Tô muito loco, acabei de passar a mão numa menininha, isso é errado, Clóvis; onde cê tá com a cabeça? Ela poderia ser sua filha, é mais nova que ela, porra! “Cachaça na caveira”, era o que dizia o mano loco lá da quebrada, ficava lá, gritando a madrugada inteira essa porra pelas madrugadas… mataram ele, eu vi quando voltava da escola, era muleque, ele era ruim, era um lixo … hoje eu sou esse cara, porra… eu sou esse cara .. vou mijar aqui mesmo, foda-se … senão mijo na calça e não fodo ninguém hoje à noite … cachaça na caveira … ca CA CHA ÇA NA CAVEIRAAAAAA!


Me falaram que hoje seria um dia bom. Me falaram. Mentiram. Nenhum dia é bom, é tudo uma sucessão de acontecimentos meticulosamente engendrados com o intuito de enlouquecer qualquer cidadão de bem. Nada, não há nada para mim nessa multidão, nenhuma dessas meninas ou homens meteriam comigo. Eu fico ali, ouvindo, lendo, cultivando um monte de pensamento bom, de gentilezas e nada disso adianta. Ninguém quer um velho escroto como eu… jamais pensei que sentiria falta do batente, mas o quartel me fazia ter linha, rotina, sonhos … agora nada mais parece fazer sentido. Nada. Tudo é tão rápido. Os dias de cama são eternos. Ontem meu periquito acordou morto. Eu esqueci de dar comida e água pra ele. Morreu novinho, chorando e eu nem escutei. Não ouvi a criaturinha me chamando. Não. Quem vai me ouvir agora? Hoje não é um dia bom; quem disse que esse dia seria ótimo, certamente não me conhece, não sabe nem quem eu sou; geralmente a gente paga para ouvir essas coisas boas, esses presságios e frivolidades; e comigo não foi diferente …

Hoje. Hoje. Hoje. Tanta gente reunida, tantas pessoas, tantos corações, tantas almas. Tantas gerações procriaram para esse momento ser único; tantas conjunções, encontros aleatórios e estrelas alinhadas para esse momento… existem tantas almas em busca de algo hoje, andando em linha reta para o matadouro, aceitando tudo sem gritar … hoje… Hoje. HOJE! Hoje eu alterarei para sempre a vida das pessoas que pisaram nesse lugar e serei lembrado por todos. Hoje.

sexta-feira, 28 de março de 2014

belmont em crise (II)

- E essa coisa de escrever, mano?
– É isso: só uma coisa.
– Certo... mas o que te leva a isso? “O que te motiva a escrever?”; essa foi a  minha pergunta, cara.
Virei a cerveja. O olhar para dentro do copo. O restinho.
– Cara, quem tinha de me dizer isso é você.
– Porra, como assim?! Você é o metido a escritor aqui nessa mesa!
– Eu não sou metido, parceiro. Eu sou “metidinho”...
Risada. Pausa.
– E você que me pergunta isso? E você?! O que você é nessa coisa toda?
– Ãhn ??
Mais uma. Garçom. Saideira.
– Você que é o leitor aqui. Você lê o que eu escrevo?
– Às vezes…
Deu risada. Resposta.
– Touché.
Copos erguidos. Velhos amigos.
Bebemos a última sem se preocupar com mais nada disso. Ele seguiu o caminho dele, e eu o meu. O Largo tava agitado, um monte de coisas acontecendo.
O ponto tava vazio. Eu tinha um latão de Itaipava na mochila. Beleza.
Chegou um muleque no ponto. Todo serião. Sacou um canetão da mochila. Mandou na estrutura de ferro do ponto de ônibus a seguinte frase:
“A gente só vive por causa da curiosidade”
E abaixo da frase, mandou um Tag todo estiloso. Muito foda.
E eu sorria, me sentia bem pra caralho por ter visto e lido tudo aquilo.

quinta-feira, 20 de março de 2014

belladonna

Lavou a mancha enorme com muito sabão e água da pia do banheiro.
– Deixa escorrer bastante água. Esfrega mais forte!
A mulher ficava na torcida; aflita, levantava as mãos em desespero, não suportava a sujeira tomando conta do tecido. Uma mancha de café, morosa, tomando o verde-claro da camisa. Um pensamento terrível para ela. O chão todo molhado, o tapetinho ridículo sob os pés do casal.
– Não foi nada, Bia. Tranquila, amor.
Olhou para esposa, sereno. Ela ajeitou os óculos.
– Eu… (soluço) sei lá … Eu não queria ...
Olhou para baixo.
O cara respirou fundo, de saco cheio.
– Sério, Bia?! É só uma mancha de café, porra! Não foi culpa sua, linda.
E a olhou com ternura.
– Na moral, esquece isso. De verdade.
Bia desabou a chorar e o cara a abraçou bem forte.


No dia seguinte ele não estava mais na cama. Levantou cedo e foi trabalhar na serralheria da esquina. Moravam há um ano e meio de aluguel nos fundos de uma casa velha, a proprietária era uma senhora meio burlesca, que parecia uma caricatura de dona de bordel de filmes de gangster.
“Ela só é exótica” - pensava Bia.
Sozinha em casa. Um terror cotidiano. Desatou o dia a andar pela sala sem parar. Parou. Fumou um cigarro. Começou a escrever no computador. Era redatora, fazia bico para um monte de publicações. Trabalhava em casa. “Um trabalho bom”, pensava. O foda era o marido na rua, doze horas esmerilhando as mãos -  e o orgulho -  em um monte de banquinhos sem graça e cavalinhos de brinquedo.
Um café. Só isso, era o que precisava naquela manhã.
“Não, melhor não…”
Lembrou da mancha. Do café na mesa. Cacos de xícara de porcelana no lixinho que ninguém sabia abrir da cozinha
Dia anterior. O marido chegara em casa mais cedo, depois do trabalho, exausto, sujo; ia tomar o café que estava na mesa. Ela viu o marido, tomou um susto. Terror; se aproximou rapidamente, deu um beijo nele e  - de um jeito desajeitado e violento -  esbarrou no braço que segurava o café. Derrubou tudo, café e xícara no chão. Porcelana, dragões, ninfas. Queimou de leve os dois. Disse ao marido que o café estava frio. A mancha, enorme. Um tumor. Metástase de cafeína. Os dois no banheiro. Que porra ...
"Não, deixa eu tomar um chá"
Lembrava. Não achou a camisa manchada. Vasculhou a casa toda. Por fim, desistiu. Quando foi jogar o modess no lixo, viu a camisa verde-claro e a enorme mancha entre papéis higiênicos de resfriado e merda.
Pegou um pedaço de papel higiênico limpo e a retirou do lixo.
Cheirava mal.
Ela chorou. Muito.
Jogou de novo a camisa no lixo. Deitou na cama, ligou no trabalho e disse que não poderia entregar o rascunho prometido, disse que tinha consulta marcada, algo assim. Acreditaram.
Queria dormir, não conseguia. Nove horas da manhã. Ainda. Dia lento, arrastado. Enxaqueca, cólica do caralho.
Procurou algo na caixa de remédios para amenizar a dor.Tomou uns remédios para insônia, legalizados. Deitou no sofá da sala.
Adormeceu vendo “I Love Lucy”. Preto e branco. P & B.
Acordou no hospital. Noite. O marido a olhava, desesperado.
Overdose, soro, lavagem estomacal.
– Tudo isso por uma camisa, Bia! Era só uma lembrança! Um treco, um presente... só isso! Porra, sua maluca do caralho!!!
Ela não disse nada, não esboçou nenhuma reação. Os médicos os deixaram a sós. Sabia que tava tudo acabado; aquele silêncio, cheiro de corredor, formol, que aquilo tudo era longe demais, mas não era bem o que tinha acontecido e seria difícil, impossível explicar. Só estava com uma dor de cabeça tremenda, melancólica, ansiosa e com sono. Tomou os remédios no desespero, ingenuidade, a cabeça explodia, só queria acordar mais tarde, quando o marido chegasse do trabalho… eram dias estranhos. Teve um sonho em preto e branco, só estava exausta.
Mas ninguém entenderia isso. Era uma maluquice plausível, e tava tudo bem claro: ela era uma maluca superprotetora, com baixa autoestima e que chora por manchas de café numa camisa que deu de presente para o marido no dia mais importante de sua vida. É, era bem compreensível: se ela fosse o marido, daria o mesmo entendimento a tudo. “Foda-se, mais um para a lista”
Ficou sozinha. Ele foi embora. 
Ela sorriu, pois era tudo uma leve ironia, sutil e brilhante: a mancha de café, o dia anterior à mancha: ela sentada na mesa olhando para o café (que seria derramado) durante horas, a enxaqueca...
O casamento acabou. 5 anos. Tudo por causa de uma mancha de café na camisa e uma sensibilidade fudida e ridícula; foi aconselhada a fazer sessões de terapia. Um ano depois já estava namorando, indo para a academia, fazia Muay Thai de manhã, trabalhava em transcrições de textos para braile à tarde, morava no Centro e se recuperava de uma cirurgia na córnea que deveria ter feito há muito tempo.
Fez o que deu vontade, tudo que estava em listas e agendas, em promessas de ano novo, o que tinha acumulado; e podia se dizer que toda aquela merda do ventilador ficara para trás. Não queria morar com o novo namorado, a verdade é que se davam bem distantes um do outro. Se amavam.
Tudo isso por causa de uma mancha de café.
Um café que continha veneno e estava na mesa...

sexta-feira, 14 de março de 2014

último dia em roma

Desciam as ruelas sinuosas. Despreocupados, chapados de vinho. Um grito.
– Fogo, fogo! Corram, salvem suas vidas, irmãos!!
Os dois correram. O fogo entranhava o horizonte distante em matizes cinzas e laranjas. Chamas impetuosas erguiam aos céus. Casas pobres, de madeira, de tijolos; ruíam em segundos com baques violentos. Longe do caos da morte e gritaria, choraram juntos e apoiados um no ombro do outro. Contemplavam o apocalipse.
– Aonde vamos agora?! Aonde vais, irmão?!
Os dois olharam para baixo.
Um plebeu surgiu entre os amigos. Corria. Resfolegava, sofria. Gritou aos amigos, pedindo ajuda. Esfumaçado, queimado e parcialmente deformado.
– Foram os cristãos! Morte aos cristãos!
Os dois se entreolharam. A enorme bola de fogo engolia a cidade.
– Assassinos!
O homem queimado chorou de dor, desolação. Cansou do choro.
Os dois continuaram as andanças. Não tinham familiares: os pais morreram cedo e eram amigos de infância.
O mais jovem disse ao homem queimado:
– Tens família, irmão?
O homem chorava...
– Não! Não tenho ninguém! Ninguém!! Estou perdido nesse mundo no último dia dessa cidade!!
Os dois olharam o pobre coitado.
– Tens a nós, amigo. As coisas ficarão feias nessas ruínas. Vamos embora. Essas enormes edificações, essa cidade… tudo aqui não foi feito da noite para o dia, mas, veja… como as ruínas em chamas cedem em questão de segundos…
Os três olharam as ruínas. Extasiados. Horas e horas.
– Ao inferno com os romanos e os cristãos. Provavelmente isso continuará por anos … Jesus está morto e o Imperador sorri do alto do cume lá longe na única edificação intacta! Vês? Estamos sozinhos, os três... distantes do calor, mas como é bela a pintura...
Fogo. Labaredas. Inferno. Carne.
Viajavam às cidades e contemplavam homens decapitados e esquartejados pelas estradas. Doentes de malária. Eram chamados de criminosos. O legado do fogo era imortal.
Admirando as chamas, os três frequentaram diversos vilarejos e atearam fogo nos lugares mais inóspitos e pobres durantes duas décadas. O fogo consumia tudo. Somente os imponentes prédios permaneciam.
Iniciaram um culto. Orgulhavam-se de seus feitos. Ganharam adeptos.
Os primeiros amantes do fogo, os incendiários e piromaníacos, nasceram dessa comunhão dos três homens sem família e nada a perder. Pelo poder da chama, eis a extensão da irmandade. Cidades e vidas consumidas até o fim dos tempos.

quinta-feira, 6 de março de 2014

manual de robótica sexual

Costumavam dormir abraçados. Beijos e carícias. Tesão na hora certa e beijos trágicos entre despedidas calculadas diariamente. A mulher se foi. Trabalho. Escritório.
Uma hora depois.
O homem metálico batia à porta.
-Ela se foi. Podemos começar?
Ele, o homem, introduzia o pau duro em três orifícios metálicos, revezando com intensidade as estocadas. O outro, o homem metálico, aguentava tudo, impassível. Observava a sessão  de sexo com devassidão (artificial e programada minuciosamente), em um misto de tédio e olhar científico para os fatos empíricos. Armazenava todos os dados, analisava e se adequava às preferências do seu cliente com uma obsessão monomaníaca de androide.
Os dois se comiam depois, mas o homem sofria mais na alternância. Sempre pedia mais. Essa rotina era revivida nas manhãs de terça, quarta e sexta; eram dias que o homem entrava no expediente mais tarde.
Uma bela manhã de putaria depois – e carícias trocadas na cama -, o homem resolveu desanuviar algo:
-Acha que eu sou viado?!
Pergunta idiota, casual; mas jogada, propositalmente, com insistência e curiosidade pelo homem. A questão pairava e flutuava, entre baforadas de cigarro na cara do homem metálico. Por fim, o homem metálico disse:
-O senhor quer dizer “homossexual”?
O homem baforou com violência na cara do androide.
-Viado, VI- A- DO: homossexual. Cacete, eu pago uma milha para ninguém te programar direito; só sabe foder direito, bicho burro do caralho... SIM, sim! Homossexual, porra!!
Deu uma porrada no androide:
– ACHA QUE EU SOU HOMOSSEXUAL, seu balde de porra de metal!!!
O androide assentiu, sem esboçar nenhum abalo:
-Ok, pergunta confirmada. Deseja uma margem de porcentagem para a classificação proposta, Senhor?! De modo a tornar a ... O homem o interrompeu com um tom de voz alto; visivelmente transtornado de cólera com a objetividade do androide.
-Deixa eu ver ...
(pausa, 2 segundos)
– Dãããããnn, SIM, seu filho de uma puta, por favor, pooooorrrraaaa! Gritou. Silêncio.
– Afirmativo. Um momento, Senhor.
Os olhos cibernéticos piscaram entre flashes azuis e verdes numa velocidade convulsiva. O pequeno espetáculo iluminou o quarto por um tempo. Por fim, o androide anunciou o resultado.
– Você está configurado como “Homossexual” em 100%, de acordo com o programa “Sexuality”, Senhor.
Silêncio. 5 segundos.
O homem meneava a cabeça, incomodado, fumava com calma. Por fim, balançou a cabeça em negação e proferiu a sentença lentamente, com raiva e asco.
- Que piada… Sim, mas eu como buceta, como o cu dela todos os dias... Minha mulher dá para mim todos os dias e eu como mulher! Eu só namorei mulher, casei e o caralho!! Como pode isso?! Eu, viado?!! Que mistério é esse? Como eu posso ser bicha comendo mulher, caralho !!?
Começou a gritar.
- Seu rabo besuntado de óleo Radial não é o único na minha preferência!! Eu sou macho, porra!! Seu filho da puta! Como ousa, caralho?! Que merda de programação é essa?
Levantou da cama. Jogou, com violência, um pesado travesseiro de penas de ganso no homem metálico. As iniciais da mulher estavam bordadas no travesseiro caro, dado como presente de namoro há um ano.
-Eu vou te desligar, seu merda. Tá vendo isso aqui? Chega!!
Era um cartão de plástico com o nome dele escrito.
-Isso aqui vai te mandar embora. Agorinha. Quer ver?!
Passou o cartão no computador portátil de pulso. Acionou o comando de voz, aproximando o braço com o terminal implantado:
-Cancelar a assinatura do “Pau de Ouro”.
O homem metálico o olhava com uma inexpressividade tocante de androide. "Blip". Sinal de confirmação, a mensagem era visualizada pelo terminal neural e exibida no braço: assinatura "Pau de Ouro" foi cancelada com sucesso!
-Agora vai! Passa daqui, sua bicha do caralho!!
Ele foi. O androide do sexo levantou-se lentamente. Parou na soleira na porta. O sol da manhã reluzia o quarto inteiro. O reflexo do sol no metal projetava linhas difusas e cegantes no corpo da máquina.
-Vai embora, sua putinha. Xispa!
Ele ficou ali, parado na soleira porta. Nem olhou para trás:
-Acha que pode haver um defeito na minha programação, Senhor? Baseado em um acurado sistema, nós ...
O homem o olhava. Na bunda, mas olhava.
-Ãhn?! Cala a boca, porra!! Vai embora, viadinho do rabo de ferro: acabei de cancelar a sua assinatura, caralho! Tem uma cláusula especial que diz, especificamente, que posso atirar na sua bunda agora se eu quiser. Eu tenho um belo modelo de BFG-9000 aqui comigo, louco para atirar uma azeitona nuclear nas suas pregas “homossexuais”, surfista platinada!
O homem metálico continuou a andar. Não olhou para trás.
À noite, a mulher chegava. Os dois treparam.
Boquete. Gozada. Uns abraços e apertadas fortes; nada demais: era só mais uma trepada, “uma regularidade nos contratos”, pensava alguém nessa relação. Às vezes, os dois chegavam a essa conclusão mutuamente.
O homem levantava da cama nas madrugadas. No meio da noite, com o pinto meio sujo de porra, dava voltas pela casa. Sorrateiramente, quando a mulher dormia, ia para o canto da cama; lá, acessava seu computador neural e via sites pornográficos; e assistia, basicamente, a diversos vídeos de transsexuais cibernéticos, homens fodendo homens no cu, etc; tudo com toda a força motriz de uma broca de potência gigawática do velho século XXIX.
Batia umas punhetas até de manhã. A mulher saía para trabalhar, enquanto ele sentia um misto de vazio e alívio no coração.
“Preciso daquele pau. Preciso” Voz da razão.
“Não, não posso”
Relutava. Dias e noites de andanças sorumbáticas. O carro sempre optava, na volta para casa, pelo trajeto nas avenidas mais mal frequentadas. 
Mas…Uma bela manhã de sexta-feira:
“Preciso! Muito!!” - gritou o homem, aproximando o cartão do terminal. Fez alguns procedimentos no pedido.
Vinte minutos depois o homem metálico voltara; o homem deu um beijo maravilhoso na boca do homem metálico. Foi foda. Pediu que, imediatamente, alterasse o tamanho do seu pau-broca para um metro. O androide o fez, sem titubear.
Gritos, gozadas, carícias depois.
-Acha ainda que eu sou viado, sua máquina suja e gostosa?!
Questionava ao androide o homem todo contente, cheio de porra artificial química na cara e extasiado com o desempenho da máquina.
-Hein?!
Gritou sadicamente:
- Fala, seu filho da puta!! Fala agora!!
O homem metálico não dizia nada. Silêncio. Só projetou uma mensagem holográfica no ar com as letras em fonte Book Antiqua em alta resolução:
“Esse androide não possui mais o programa de classificação de preferências sexuais, “Sexuality”; pedimos desculpas, e ressaltamos que essa unidade não pode ser mais reprogramada, ou questionada, sobre assuntos relacionados à classificação de sexualidade de terceiros”
O homem sorria, sorria, sorria…
… tamanha, e descomunal, era a sua felicidade.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

a central de cobrança

Verdade, verdade. Estamos aqui, numa sala retangular, com revistas Veja em cima das mesas de vidro, bem reluzentes, e refletores comprados em alguma loja moderna de design de interiores. Vejamos... De frente ao sofá de veludo (que estou sentado) tem uma sala, e ouvimos, através de uma gigante porta de metal, uma mulher torturando um homem que grita nítida e estridentemente. Barulho intenso de instrumentos odontológicos, pancadas e instrumentos cortantes.
Não há uma placa escrito “dentista” nessa sala.
Eu aguardo. A moça – uma ruiva voluptuosa e com uma blusa toda suada escrito “Sidney Sheldon makes me happy” – faz uma menção para mim e um sinal “você é o próximo”. Eu pego uma das diversas revistas da mesa à minha frente. Dobro a revista nas mãos, e me dirijo até a sala.
Abro a porta. Homem caucasiano (branco, porra), calvo, com um mullet ridículo pendendo nos ombros jorrando sangue pela orelha. Torrentes intermináveis de sangue descendo pela sua “outrora” camisa social branca. Filetezinhos de sangue pendem pela boca numa cachoeira do inferno.
– Bom trabalho, ruiva...
Ela me olha com uma expressão vazia e entediada. Sai em direção à porta. Bate com força e derruba um quadro com os procedimentos da sala. O treco quebra, péssimo material.
Eu faço uma menção ao cara.
-Oi, beleza...
O cara grita desesperadamente. Está amarrado numa cadeira e amordaçado com um pano imundo e babado.
Eu sorrio, ué?! Afinal, sou um homem cordial.
-Meu, espero que eu consiga realizar bem o meu trabalho aqui. Veja bem, se eu conseguir desenvolver um bom atendimento contigo, não haverá a necessidade de você parar naquela vala clandestina que fizemos ao lado do Cemitério Israelita; especialmente sob encomenda e com todas as suas medidas, ok?!
Ele balbucia algo.
– Eu disse “fizemos”, mas eu não estava lá de qualquer forma, sabe?! Tava em casa, dando umas voltas com o Poppy e pegando o seu cocô. Demos uma volta pelo bairro em busca de umas cachorras, to querendo tirar a virgindade dele, sabe? – sorrio.
O homem me olhava menos aterrorizado. Intrigado.
-... mas, veja bem, como eu ia dizendo, “se” fosse eu “o puto que abriu aquela vala da morte numa noite chuvosa e com um calor infernal da Zâmbia que dava nessa cidade”, desceria o cacete em você de raiva e, realmente, esperaria que você morresse o quanto antes pelo trabalho todo. Viu aquela ruiva que te tratou com carinho agora? Ela e mais um maluco russo, bem encorpado, ficaram a noite inteira com pás e terra por todo o corpo. Não me parece nada divertido. E ela odeia aquele grandalhão que vive fazendo piadas sexistas com ela, sabe? Fez a noite inteira isso com ela. Por isso, por toda essa noite, te digo que ela está louca para acabar contigo, amigo. Eu vejo com os meus próprios olhos o empenho dela nessa solicitação.
O homem se altera. Começa a respirar alto como um velho à beira da morte sendo reanimado por desfibriladores.
-Calor, amigo?
Eu me dirijo até um ventilador no canto da sala. Reato uns fios e ligo na tomada.
-Melhorou, né?! Viu como ela saiu toda suadinha daqui. Legal, né?! Eu aprendi esse truque com o pessoal “das antiga”; gente tarada, não me enquadro nessa estirpe, mas tenho que manter o segredo dos homens por aqui. Sigilo profissional, vínculo empregatício. Diverte a todos e até os que sentam aí, né?
Ele grita.
-Se bem que seria doentio um homem ter uma ereção quando está sendo surrado, cortado e espancado a horas por uma mulher bonita e atlética...
Ele não esboça nenhuma surpresa. Começa a chorar copiosamente.
-Acredito que tem gente que já sentiu isso. O truque é deixar o ventilador desligado e elas suam mais aqui nessa sala, o que torna a vida de todos mais divertida por aqui, não é? Como fenômeno comportamental me interessa, estou no terceiro ano da faculdade...
Ele continua inexpressivo.
-Continuando… Eu tenho vinte minutos para tentar um “approach” melhor contigo, ok?!
O cara meneia com a cabeça afirmativamente. Meio tímido, mas acho que a expressão corporal não me traiu dessa vez: vemos um cara amarrado numa cadeira de ferro com arames por todo o corpo, amordaçado; acho que não é mais possível ter dúvidas em relação às minhas noções apuradas sobre comportamento e expressão corporal. Tenho que estagiar e trabalhar bastante para fechar a solicitação. Me empenhar. Focar.
Tem um cara todo fudido na minha frente.
-Okaaaaaay.... Vamos lá… - digo, tirando a mordaça imunda do cliente.
Eu não lembrava muito do caso todo. Só sei que tínhamos que refazer todo o percurso e analisar tudo de novo. Tinha um laptop aberto numa cadeira com o log de todo o atendimento.
-Vejamos... O senhor está com um acordo com o banco, não é mesmo?
-Fhim.... Siimimmmm...
– O senhor fez uma antecipação do acordo, né?! De todas as parcelas no mês 10... eeeee
(pausa, 3 segundos)
- …. vejamooooos…. parcelou essa fatura  em 24 vezes de R$6.555,47 com juros mensais de 17,87%, correto?
-Hmmm... fhimmimmm...
-Sua dicção está difícil...
Dei uns dez segundos e olhei para ele atentamente. Ele estava tremendo. Acho que se mijava. Cheirava mal. Eu o olhei com compaixão.
-Amigo, não tenha medo... Eu sou meio novo nessa célula, já trabalho há um bom tempo com isso, mas isso é inteiramente novo para mim. Eu quero fechar isso com o senhor e, acredito, que é do seu interesse manter a vida e gozar da sua vida plena com a família e seus filhos, não é?
-SIM!
- Humm... melhorou... melhorou....
Ele estava vívido pela primeira vez.
-Ok...
Peguei a pasta em cima.
– Tem uma filha? Catarina, né?
- Deixem ela emmmm... PAAAAAAZZZZ!!
– Interessante. O senhor tem estímulos mais inteligíveis e dicção aperfeiçoada conforme mencionamos o seu núcleo familiar. Espere...
Eu abri o meu bolso do paletó e liguei o gravador.
-Não se importa, né?
Ele não respondeu. Fez uma cara feia.
Eu me aproximei dele, dobrei com mais força a revista que estava na minha mão e bati com força na cara dele umas quinze vezes.
-E não é que essa revista é boa para isso?!
O homem gritava de dor e agonia. Um barulho desnecessário.
-Vai pagar essa dívida quando, senhor?
-Amanhã!!! AMANHÃ?
Olho pausadamente para ele. Rosto vermelho, boca sangrando.
-Será que posso acreditar no senhor?! Entramos em contato com o senhor, deixamos recado três vezes no seu celular e jamais fomos atendidos... O que o senhor faria para acreditarmos nisso?!
O homem ficava chorando e não dizia nada.
Peguei uma pasta na mesa do canto. Eu estendi uma foto a ele.
-Ela tem dezoito anos. Catarina. Não faremos nada com ela, senhor. Nada...
O homem desabou.
- Por enquanto... ela tem toda uma vida de pecados pela frente.
-Eu pago!!
-Espero que o senhor faça isso, anseio do fundo, do âmago da minha alma, pois estamos com ela em um apartamento no Guarujá. Ela está presa em quarto antirruído e, até o momento, aquele russo, que cavou a sua cova, está jogando um Black Ops online na sala... bem despreocupado... mas se mandarmos uma mensagem para ele, creio que ele ficará meio incomodado por interrompermos a sua partida online; e, creio, que ele irá se entreter de outra forma...
-Não façam isso! Não é preciso isso!
-O senhor acredita?!
-Não! É mentira, seu filho da puta! Catarina está em Minas na casa da prima !
Eu peguei o laptop. Fiz uns logins.
Coloquei uma cadeira em frente a ele e posicionei o laptop à altura dos seus olhos. Uma webcam, meio trêmula, posicionada no teto; alguns frames meio lentos, mas – no geral – era uma transmissão razoável. Uma garota com um vestido claro e manchado chorava no meio de uma sala sem nenhum móvel. Havia umas coisas escuras em cantos da sala.
-Sua filha está revendo novos conceitos de higiene....
O homem chorou e praguejou, tentou lutar contra a cadeira chumbada ao chão, e os arames farpados iam dilacerando a sua carne até o osso. Por fim teve um ataque de choro e me chamou de tudo quanto é nome. Voltei à sala anterior, peguei mais umas três revistas da mesa com manchetes em fontes horríveis e as dobrei em três. Surrei o diabo com todas.
Por fim ele entendeu.
-Amanhã, senhor?
-Sim.
-Aconselho o senhor a fazer o que for necessário para conseguir esse dinheiro. É o que sempre digo aos meus clientes. “O  que for necessário”...
O homem chorava, assistia hipnotizado a filha chorar no meio da sala a gritar.
Era uma imagem horrenda. Mas existiam trabalhos piores. Comigo era pior na outra célula. Hoje, tenho comissão por baixa de solicitação e o meu VR é bem maior. Muito já se passou nessa vida.
A porra do filme da minha vida passava na minha frente e eu comecei lembrar de quando estava no limite.
-Deixaremos o senhor em um terreno baldio. Há uma quadra de distância desse terreno que mencionei tem um hospital, bem na esquina. Diga que foi assaltado e espancado. Acredite, isso é importante: é uma senha. Eles tratarão você muito bem, é o nosso convênio; tudo será arranjado para que o senhor seja tratado, sem despesa alguma, e poucos saberão do que aconteceu e permitirão o seu atendimento: tudo sem empecilhos ou questionamentos desnecessários, acredite. Somente um homem verificará se tudo que o senhor relatou bate com o nosso acordo aqui, ok? Ele me ligará se algo der errado, compreende? Isso, sempre é importante lembrá-lo, atrapalhará uma partida importante partida online no litoral. Não queremos isso. Te dou três dias, para arrumar isso; é o bastante?!
-Fimmmimmmm... huhuhuhu...
-Catarina prefere urgência nesse assunto...
Chorava para caralho o diabo do homem feio.
-... e nós também.
Desatei os fios do ventilador e o desliguei. Saí da sala com as revistas na mão.
-Tó, leia isso aqui.
Joguei as revistas no colo da ruiva. Ela estava com um miniventilador na mão com a carinha do Ben 10. Bebia uma garrafinha de Corot.
-Eu baixei a solicitação. Não fique brava comigo. Tenho os meus 35% e você 20. Todo mundo fica feliz, ruiva. Leva o homem lá agora.
Saí andando pelo corredor.
-Ei, essa revista é a melhor para isso, ruiva. Pode tentar!
Minha voz ecoava pelo longo corredor da central. Pelos corredores, eu via todos os homens com os seus crachás e respectivas operações. Eu fui descendo aos andares inferiores e me lembrei de como era a vida lá embaixo.
A minha vida. Ex-vida.
Não, ainda era a minha vida, a mesma vida: percebi isso passando o crachá na saída e descobri que faria o mesmo amanhã.
A menina na sala com webcam chorava. A ruiva enchia a cara se lamentando pela perda da baixa. O russo dava risada e jogava umas partidas online no Guarujá.
Os ecos daquele quarto retumbavam na minha cabeça...
Apressei o passo porque lembrei dos cachorros com fome em casa. Metrô cheio. Chovia.