sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

a central de cobrança

Verdade, verdade. Estamos aqui, numa sala retangular, com revistas Veja em cima das mesas de vidro, bem reluzentes, e refletores comprados em alguma loja moderna de design de interiores. Vejamos... De frente ao sofá de veludo (que estou sentado) tem uma sala, e ouvimos, através de uma gigante porta de metal, uma mulher torturando um homem que grita nítida e estridentemente. Barulho intenso de instrumentos odontológicos, pancadas e instrumentos cortantes.
Não há uma placa escrito “dentista” nessa sala.
Eu aguardo. A moça – uma ruiva voluptuosa e com uma blusa toda suada escrito “Sidney Sheldon makes me happy” – faz uma menção para mim e um sinal “você é o próximo”. Eu pego uma das diversas revistas da mesa à minha frente. Dobro a revista nas mãos, e me dirijo até a sala.
Abro a porta. Homem caucasiano (branco, porra), calvo, com um mullet ridículo pendendo nos ombros jorrando sangue pela orelha. Torrentes intermináveis de sangue descendo pela sua “outrora” camisa social branca. Filetezinhos de sangue pendem pela boca numa cachoeira do inferno.
– Bom trabalho, ruiva...
Ela me olha com uma expressão vazia e entediada. Sai em direção à porta. Bate com força e derruba um quadro com os procedimentos da sala. O treco quebra, péssimo material.
Eu faço uma menção ao cara.
-Oi, beleza...
O cara grita desesperadamente. Está amarrado numa cadeira e amordaçado com um pano imundo e babado.
Eu sorrio, ué?! Afinal, sou um homem cordial.
-Meu, espero que eu consiga realizar bem o meu trabalho aqui. Veja bem, se eu conseguir desenvolver um bom atendimento contigo, não haverá a necessidade de você parar naquela vala clandestina que fizemos ao lado do Cemitério Israelita; especialmente sob encomenda e com todas as suas medidas, ok?!
Ele balbucia algo.
– Eu disse “fizemos”, mas eu não estava lá de qualquer forma, sabe?! Tava em casa, dando umas voltas com o Poppy e pegando o seu cocô. Demos uma volta pelo bairro em busca de umas cachorras, to querendo tirar a virgindade dele, sabe? – sorrio.
O homem me olhava menos aterrorizado. Intrigado.
-... mas, veja bem, como eu ia dizendo, “se” fosse eu “o puto que abriu aquela vala da morte numa noite chuvosa e com um calor infernal da Zâmbia que dava nessa cidade”, desceria o cacete em você de raiva e, realmente, esperaria que você morresse o quanto antes pelo trabalho todo. Viu aquela ruiva que te tratou com carinho agora? Ela e mais um maluco russo, bem encorpado, ficaram a noite inteira com pás e terra por todo o corpo. Não me parece nada divertido. E ela odeia aquele grandalhão que vive fazendo piadas sexistas com ela, sabe? Fez a noite inteira isso com ela. Por isso, por toda essa noite, te digo que ela está louca para acabar contigo, amigo. Eu vejo com os meus próprios olhos o empenho dela nessa solicitação.
O homem se altera. Começa a respirar alto como um velho à beira da morte sendo reanimado por desfibriladores.
-Calor, amigo?
Eu me dirijo até um ventilador no canto da sala. Reato uns fios e ligo na tomada.
-Melhorou, né?! Viu como ela saiu toda suadinha daqui. Legal, né?! Eu aprendi esse truque com o pessoal “das antiga”; gente tarada, não me enquadro nessa estirpe, mas tenho que manter o segredo dos homens por aqui. Sigilo profissional, vínculo empregatício. Diverte a todos e até os que sentam aí, né?
Ele grita.
-Se bem que seria doentio um homem ter uma ereção quando está sendo surrado, cortado e espancado a horas por uma mulher bonita e atlética...
Ele não esboça nenhuma surpresa. Começa a chorar copiosamente.
-Acredito que tem gente que já sentiu isso. O truque é deixar o ventilador desligado e elas suam mais aqui nessa sala, o que torna a vida de todos mais divertida por aqui, não é? Como fenômeno comportamental me interessa, estou no terceiro ano da faculdade...
Ele continua inexpressivo.
-Continuando… Eu tenho vinte minutos para tentar um “approach” melhor contigo, ok?!
O cara meneia com a cabeça afirmativamente. Meio tímido, mas acho que a expressão corporal não me traiu dessa vez: vemos um cara amarrado numa cadeira de ferro com arames por todo o corpo, amordaçado; acho que não é mais possível ter dúvidas em relação às minhas noções apuradas sobre comportamento e expressão corporal. Tenho que estagiar e trabalhar bastante para fechar a solicitação. Me empenhar. Focar.
Tem um cara todo fudido na minha frente.
-Okaaaaaay.... Vamos lá… - digo, tirando a mordaça imunda do cliente.
Eu não lembrava muito do caso todo. Só sei que tínhamos que refazer todo o percurso e analisar tudo de novo. Tinha um laptop aberto numa cadeira com o log de todo o atendimento.
-Vejamos... O senhor está com um acordo com o banco, não é mesmo?
-Fhim.... Siimimmmm...
– O senhor fez uma antecipação do acordo, né?! De todas as parcelas no mês 10... eeeee
(pausa, 3 segundos)
- …. vejamooooos…. parcelou essa fatura  em 24 vezes de R$6.555,47 com juros mensais de 17,87%, correto?
-Hmmm... fhimmimmm...
-Sua dicção está difícil...
Dei uns dez segundos e olhei para ele atentamente. Ele estava tremendo. Acho que se mijava. Cheirava mal. Eu o olhei com compaixão.
-Amigo, não tenha medo... Eu sou meio novo nessa célula, já trabalho há um bom tempo com isso, mas isso é inteiramente novo para mim. Eu quero fechar isso com o senhor e, acredito, que é do seu interesse manter a vida e gozar da sua vida plena com a família e seus filhos, não é?
-SIM!
- Humm... melhorou... melhorou....
Ele estava vívido pela primeira vez.
-Ok...
Peguei a pasta em cima.
– Tem uma filha? Catarina, né?
- Deixem ela emmmm... PAAAAAAZZZZ!!
– Interessante. O senhor tem estímulos mais inteligíveis e dicção aperfeiçoada conforme mencionamos o seu núcleo familiar. Espere...
Eu abri o meu bolso do paletó e liguei o gravador.
-Não se importa, né?
Ele não respondeu. Fez uma cara feia.
Eu me aproximei dele, dobrei com mais força a revista que estava na minha mão e bati com força na cara dele umas quinze vezes.
-E não é que essa revista é boa para isso?!
O homem gritava de dor e agonia. Um barulho desnecessário.
-Vai pagar essa dívida quando, senhor?
-Amanhã!!! AMANHÃ?
Olho pausadamente para ele. Rosto vermelho, boca sangrando.
-Será que posso acreditar no senhor?! Entramos em contato com o senhor, deixamos recado três vezes no seu celular e jamais fomos atendidos... O que o senhor faria para acreditarmos nisso?!
O homem ficava chorando e não dizia nada.
Peguei uma pasta na mesa do canto. Eu estendi uma foto a ele.
-Ela tem dezoito anos. Catarina. Não faremos nada com ela, senhor. Nada...
O homem desabou.
- Por enquanto... ela tem toda uma vida de pecados pela frente.
-Eu pago!!
-Espero que o senhor faça isso, anseio do fundo, do âmago da minha alma, pois estamos com ela em um apartamento no Guarujá. Ela está presa em quarto antirruído e, até o momento, aquele russo, que cavou a sua cova, está jogando um Black Ops online na sala... bem despreocupado... mas se mandarmos uma mensagem para ele, creio que ele ficará meio incomodado por interrompermos a sua partida online; e, creio, que ele irá se entreter de outra forma...
-Não façam isso! Não é preciso isso!
-O senhor acredita?!
-Não! É mentira, seu filho da puta! Catarina está em Minas na casa da prima !
Eu peguei o laptop. Fiz uns logins.
Coloquei uma cadeira em frente a ele e posicionei o laptop à altura dos seus olhos. Uma webcam, meio trêmula, posicionada no teto; alguns frames meio lentos, mas – no geral – era uma transmissão razoável. Uma garota com um vestido claro e manchado chorava no meio de uma sala sem nenhum móvel. Havia umas coisas escuras em cantos da sala.
-Sua filha está revendo novos conceitos de higiene....
O homem chorou e praguejou, tentou lutar contra a cadeira chumbada ao chão, e os arames farpados iam dilacerando a sua carne até o osso. Por fim teve um ataque de choro e me chamou de tudo quanto é nome. Voltei à sala anterior, peguei mais umas três revistas da mesa com manchetes em fontes horríveis e as dobrei em três. Surrei o diabo com todas.
Por fim ele entendeu.
-Amanhã, senhor?
-Sim.
-Aconselho o senhor a fazer o que for necessário para conseguir esse dinheiro. É o que sempre digo aos meus clientes. “O  que for necessário”...
O homem chorava, assistia hipnotizado a filha chorar no meio da sala a gritar.
Era uma imagem horrenda. Mas existiam trabalhos piores. Comigo era pior na outra célula. Hoje, tenho comissão por baixa de solicitação e o meu VR é bem maior. Muito já se passou nessa vida.
A porra do filme da minha vida passava na minha frente e eu comecei lembrar de quando estava no limite.
-Deixaremos o senhor em um terreno baldio. Há uma quadra de distância desse terreno que mencionei tem um hospital, bem na esquina. Diga que foi assaltado e espancado. Acredite, isso é importante: é uma senha. Eles tratarão você muito bem, é o nosso convênio; tudo será arranjado para que o senhor seja tratado, sem despesa alguma, e poucos saberão do que aconteceu e permitirão o seu atendimento: tudo sem empecilhos ou questionamentos desnecessários, acredite. Somente um homem verificará se tudo que o senhor relatou bate com o nosso acordo aqui, ok? Ele me ligará se algo der errado, compreende? Isso, sempre é importante lembrá-lo, atrapalhará uma partida importante partida online no litoral. Não queremos isso. Te dou três dias, para arrumar isso; é o bastante?!
-Fimmmimmmm... huhuhuhu...
-Catarina prefere urgência nesse assunto...
Chorava para caralho o diabo do homem feio.
-... e nós também.
Desatei os fios do ventilador e o desliguei. Saí da sala com as revistas na mão.
-Tó, leia isso aqui.
Joguei as revistas no colo da ruiva. Ela estava com um miniventilador na mão com a carinha do Ben 10. Bebia uma garrafinha de Corot.
-Eu baixei a solicitação. Não fique brava comigo. Tenho os meus 35% e você 20. Todo mundo fica feliz, ruiva. Leva o homem lá agora.
Saí andando pelo corredor.
-Ei, essa revista é a melhor para isso, ruiva. Pode tentar!
Minha voz ecoava pelo longo corredor da central. Pelos corredores, eu via todos os homens com os seus crachás e respectivas operações. Eu fui descendo aos andares inferiores e me lembrei de como era a vida lá embaixo.
A minha vida. Ex-vida.
Não, ainda era a minha vida, a mesma vida: percebi isso passando o crachá na saída e descobri que faria o mesmo amanhã.
A menina na sala com webcam chorava. A ruiva enchia a cara se lamentando pela perda da baixa. O russo dava risada e jogava umas partidas online no Guarujá.
Os ecos daquele quarto retumbavam na minha cabeça...
Apressei o passo porque lembrei dos cachorros com fome em casa. Metrô cheio. Chovia.

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