terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

a morte do século (ou "o que eu fiz nas férias")

não estamos mais aqui.
na verdade, resta pouco. arrumem suas malas,
queimem seus cartões de crédito.
alinhem os quadros na parede pela última vez, crianças.
guardem os cadernos de receitas da mamãe no baú e saiam às ruas, como antigamente saíamos para admirar o pôr do sol na praça ou a passagem do circo na cidade e, garanto, verão um espetáculo singular: o meu corpo caído na rua, desacordado, mijado, cagado e cheio de chagas de um amor não curado. aninhem-se, pois eu prefiro ser admirado na minha decadência do que ser ignorado no esquecimento. pena nada, só memória, gente...
naquele dia, as crianças jogaram bola na rua e me deixaram ser uma das traves do futebol que rolava na rua da feira. o problema é que os carros passavam rápido, e elas gritavam “carro!“ e saiam do caminho cordialmente: e eu continuava parado, com orgulho, como a trave direita do time da rua de cima. intacto, sem dignidade, mas sorrindo. os carros contornavam o meu corpo jovem, franzino.
naquele dia.
naquele dia. naquele dia, a previsão do tempo foi cruel e disse, sem pesar, que ia chover granizo e eu fiquei lá, um corpo endurecido na praça pelo frio, úmido, os dedos sujos, a bermuda imunda e toda chance de redenção estaria dias à frente. uma senhora me jogou um cobertor e disse para eu ficar com deus. a redenção estava...
(adiantemos o bendito dia, o dia em questão, da redenção)
era um homem livre; na verdade; eu sou um homem livre. eu caminho pelas ruas sem ter que pegar ônibus ou bater cartão de ponto. naquele dia, um cachorro me acompanhou até a minha casa. eu disse:
-mãe, eu vou tomar um banho.
ela só me olhou. eu tava bem sujo. o cachorro atrás de mim. acho que a minha mãe chorou, sei lá. a vó, que não mexia um músculo desde o último derrame ocorrido na época em que a Laika foi para a lua, a avó doída e velha me acompanhou com os olhos. eu voltei, abri a porta do banheiro (e elas ali, só de olho) me viram pegando o cachorro. carreguei o vira-lata nos braços.
a gente tomou banho junto. o pelo sujo, uma corrente de sujeira pelo ralo, o sangue sujo da navalha social de Norman Bates escoava. xampu no totó.

no dia seguinte, eu acordei e fui para a escola. meu pai chegava de carro de manhã e me ofereceu uma carona.
“pai, a gente tem um cachorro em casa!”
ele descia a Raposo num carro do ano.
“que bom, filho”, não disse mais nenhuma palavra.
na escola, as coisas foram ótimas. eu amo a professora, ela é linda. entreguei a redação sobre os meus dias de alcoolismo e indigência na puberdade. ela leu na minha frente. palavras sobre os dias de trave na rua e carros passando em alta velocidade, dias de pedrinha de gelo.
ela disse que eu escrevia bem, que eu seria um ótimo escritor de ficção. achou bonitinho.
ela achava que era mentira, que era “ficção”. 
e na verdade era tudo mentira. isso era o mais legal, ser mentira.
eu dei o nome do meu texto de “a morte do século”; ela achou profundo; mas, na verdade, nem eu sabia o que aquilo significava; meu pai me dizia: “Carlos, você tem que estudar muito, filho, e elogiar as mulheres, sempre, e em todas as hipóteses, tentar parecer interessante dizendo coisas sem sentido e que vem na cabeça”. isso fazia muito sentido, pois tentar falar algo linear e racional me parecia idiota nos dias de hoje. e sempre elogiar as mulheres era algo que eu sempre fazia, pois parecia tão óbvio, sendo tão bonitas e com olhos tão brilhantes. eu amava as gordas, as magrinhas, as meninas com xampu de maçã verde na carteira da frente, as meninas de Adidas falso correndo em volta da escola de manhã na educação física, as meninas arrumando o cabelo e tomando sopa no recreio, colando papel de carta colorido nas pastas...meu pai me dizia muitas coisas e, que sorte, elas faziam sentido afinal de contas!.
(na verdade o tema da redação era “o que eu fiz nas férias”.)
mais uma mentira em texto. 
tínhamos tantas mentiras de verdade, gente que se esforçava em ser o que não é nas histórias. gente que dizia que sofreu muito, que passou perrengue, que juntou salário, gente que dizia que entendia o amor e amava a todos, gente que falava bonito, que dizia que era contra a violência e preconceito. "o problema é que as pessoas tomam a mentira como verdade, filho", minha professora linda me disse que eu seria um ótimo escritor de ficção e eu a amava por isso. sonhava com ela, casaria com ela quando crescer. eu escrevia mentiras, jamais quis que elas fossem verdade; desse jeito, elas seriam mais fortes e falariam mais de mim, não o contrário. do moleque do poste, dos meus sonhos, toda essa coisa que eu não sou e anseio em ser.
o cachorro me esperava em casa. ele estava perdido, era só isso. surgiu a história desse jeito, na inspiração estranha, os moleques jogando bola na hora que o cachorro me olhou, perdido. eu escrevi tudo aquilo. minha mãe só me deixou ficar com o cachorro depois de muita briga. ele tomou banho na mangueira na calçada da rua. balançou bastante o rabinho com a água caindo no pelo sujo. me lambia. eu sorria.
e eu fui lá na rua onde tombei por dias na ficção da redação da escola de férias, e joguei flores nos quintais daquela gente tão humilde e esquecida. cão perdido, anúncio no poste, criança doente. disse adeus para o cão e o devolvi ao seu dono. talvez uma criança sorrisse com o cãozinho em casa balançado o rabo bem limpinho com banho de mangueira.
eu não estava lá naqueles dias em que cheirei benzina e tomei uma bebida forte de um garrafão com uma caveira com ossos cruzados na chuva. eu perdi uma coisa que eu nem tinha e só escrevia… comecei a escrever minha redação de férias.
era fácil de entender:
eu odiava a humanidade
hoje,
com tudo isso acontecendo,

eu só tenho uma raivinha...

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