quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

a turba

O grito da turba. Enfurecida, incontrolável e indomável.
-Mata! Vagabundo!
Um homem baixo, atarracado, gritava e implorava por clemência.  Acuado, o pequeno homem convulsionava de terror e transpirava no enxofre do calor do meio-dia. Entre foices, tochas e raquetes-elétricas-mata-mosquito; o pobre diabo rogava por sua vida miserável entre um cerco policial e a turba; os homens da lei esboçaram um sorriso, e exibiam o chamado “meliante” às presas sedentas dos espectadores mais exaltados: essas divindades onipresentes e ávidas pela ordem e bom senso da cidade. 
Durante o caminho até a viatura, os policiais conduziram o homem de forma orgulhosa e firme. Mata-leão, imobilizado, “mão para trás, porra”. Escoltavam o homem. Ansiavam, secretamente, que talvez não poderiam conter a população entre o trajeto até a viatura.
Ouvimos um estampido. Foi muito rápido. Um “pá”.
Seco, grave e retumbante no tímpano*.
(*)
!
Armas são puxadas. Senhoras colocam as mãos ao peito. Crianças se assustam entre as pernas dos adultos. Câmeras, celulares empunhados. Estão chutando a cara do homem cercado, os policiais empunham suas armas e dão tiros pro alto. O tenente grita:
-Já era. Deixa o lixo pro povo.
Mataram um homem entre pontapés, socos e peixeiradas. O SAMU chegou atrasado. O homem era suspeito de roubar e agredir uma senhora na Sta Efigênia, era o que diziam. Os policiais que imobilizaram o pequeno homem (com aquele mata-leão bem justo), carregavam mais de 35 mortes entre os ombros como quimeras vigilantes. O sangue ficou, escureceu no asfalto depois de um tempo.
– Joga Coca-Cola que sai, moço! – alguém gritou para o gari.
O povo. O povo era virgem e inocente, até então ...
As telas pixeladas iluminavam os  asfaltos coagulados do Centro através de uma vitrine imponente e bem organizada; exibiam as imagens do incidente em 45” Full HD de imagens bem nítidas 1080p; a edição do programa era única e tinha um propósito: desencadeava um processo ritualístico de transmutação aos olhos precoces e infantes da massa disforme (e monstruosa) chamada “Turba” - esse coletivo incógnito dos pesadelos – que, impassível, assistia ao jornal do meio-dia. Estava ali, percorrendo os olhos sobre as cenas do assassinato enquanto almoçava e, inevitavelmente, memórias coletivas da criatura vinham à tona em torrentes massivas de violência e senso de justiça inflamado; bombardeando violentamente o cérebro policéfalo e dantesco da entidade. Imagens; imagens indescritíveis que jamais deveriam vir à tona, compartilhadas e difundidas a todos os componentes daquela consciência coletiva e vigilante. Mastigava a comida lentamente. Já não resta mais inocência à turba, já não restam mais imagens chocantes a esses olhos condicionados, já não resta paz entre os que descansam…


Todos nós somos assassinos. Sem exceções. Eu e tu, e o rabo do tatu.


* = (O estampido, ouvido lá antes, no começo do tumulto, era uma bombinha. Uma criança a acendeu para assustar os amigos que se acocoravam entre as pernas dos adultos. O resto era resto.).

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